Ojuara e o Brasil (publicado originalmente em 8/11/2007)
“O Homem que Desafiou o Diabo” mostrou-se ser um fenômeno. Às telas do cinema, apreciamos cordéis, diálogo com exímio vocabulário nordestino e atuações convincentes. O mais surpreendente é o diretor: Moacyr Goes, que antes desta fita comandara brilhantes insucessos sucessivos nos ecrãs, como “Irmãos de Fé” (2004) e “Maria, Mãe do Filho de Deus” (2003), com o padre pop Marcelo Rossi, além de longas-metragens de Xuxa Meneguel e adaptações horripilantes de duas obras-primas – uma da literatura e outra do teatro: “Dom” (de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis) e “Trair e Coçar é só Começar” (peça em cartaz desde 1986). Enfim, nada o fazia digno de bajulações. “O Homem que Desafiou o Diabo”, ao contrário, reinou nos holofotes. Baseado em livro de Nei Leandro de Castro, “As Pelejas de Ojuara”, o filme conquistou seu espaço pelo talento do ator Marcos Palmeira e o realismo do Nordeste transportado à sétima arte, algo que “A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, tentou em vão na televisão, na minissérie exibida este ano pela Rede Globo.
Palmeira é Zé Araújo, caixeiro-viajante que cai numa terra qualquer da parte de cima do Brasil. Ao se envolver com a filha (Lívia Falcão) de um comerciante turco (o sempre magnífico ator Renato Consorte), é obrigado a se casar com ela. Após meses de humilhações e reinações no matrimônio, ele se revolta depois de ouvir uma piada sobre seu relacionamento. Vira, então, Ojuara, cavaleiro valente e combativo, mas com queda ao sexo oposto. Ao caminhar pela região, depara-se com situações das mais inusitadas, até que se vê tête-à-tête com o Diabo (Hélder Vasconcelos). Este deseja o tesouro prometido por um velho negro bastante sabido (Antônio Pitanga, também magistral), agora nas mãos de Ojuara. Brigas acontecem, as reviravoltas se dão, e o herói não muda. Cata mulheres como quem escolhe frutas na feira. Encrenca-se com machões e leva a melhor (o cantor Otto faz uma ponta como um destes capangas, assim como Leandro Firmino, o Zé Pequeno de “Cidade de Deus”, de 2002). O longa-metragem se põe com mini-esquetes. Se dá bem, afinal. Ojuara perambula por todo nosso país.
Com participações de Flávia Alessandra, Fernanda Paes Leme e Sérgio Mamberti, “O Homem que Desafiou o Diabo” foi totalmente produzido pela família Barreto (o casal Luís Carlos e Lucy e os filhos Paula e Fábio). Esteve entre os 18 finalistas do Ministério da Cultura para concorrer à vaga dos cinco filmes de língua estrangeira na festa do Oscar de 2008, mas o escolhido, merecidamente, diga-se de passagem, foi “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” (2007). E ao meu ver, “O Homem que Desafiou o Diabo” vale mais a pena em comparação ao já estraçalhado “Tropa de Elite” (2007). A obra de José Padilha mostra mazelas brasileiras, como o problema do tráfico de drogas e o estado estranho da polícia. Evidentemente, possui méritos. Entretanto, o filme de Goes tem mais impacto. Dá a gente como nós, da parte de baixo do Brasil, de vermos ocorrências do outro lado do mapa, país diferente que é o Norte e Nordeste verde-e-amarelo. E a linguagem é a pitada inconfundível e muito destacada. O sotaque, primoroso. Marcos Palmeira parece ter se especializado neste tipo de papel.
Aliás, de volta às tragédias de “Tropa de Elite”, o cinema brasileiro está fatigado deste assunto, já explorado no citado “Cidade de Deus”, “Carandiru” (2003), “Ônibus 174” (2002), e “O Prisioneiro da Grade de Ferro” (2003), isso sem irmos para mais longe, com “Pixote – A Lei do Mais Fraco”, de 1981, e “Central do Brasil” (1998). Bastam de crimes na tela. Sim à infinita diversidade tupiniquim.