Um Ator (publicado originalmente em 25/10/2007)
A imagem que mais vi de Paulo Autran foi a da sua cena com Fernanda Montenegro na novela “Guerra dos Sexos” (1983). Aquela troca de carinhos, voando pedaços de bolo e café por todo canto, marcou a passagem rara de Autran na TV. Ele detestava fazer novelas. Esteve em cinco ou seis, nos seus mais de seis décadas de atuação. Preferia teatro. Era cria do teatro. Com o cinema, flertou feito a criança que quer o brinquedo, mas os pais proíbem-no de se divertir. Assim, brincou quando quis ou ao ser devidamente convidado. Rodou uns 15. “Terra em Transe” (1967) foi o maior dele. Dele e de muitos outros. A fita pegou o auge de tudo: Cinema Novo, Ditadura Militar, os talentos do maluco e feroz Glauber Rocha, além de Autran, José Lewgoy e Jardel Filho. O Porfírio Diaz de Paulo Autran hipnotizou os espectadores pela transcendência. O olhar esbugalhado dele transmitia todo o clima de descontentamento com o período fascista que reinava o Brasil. O longa-metragem detalhou em cada quadro o submundo verde-e-amarelo. O país seria dominado por forças delirantes de Glauber Rocha.
Mas as filmagens passaram e Autran seguiu nos palcos. Nunca o assisti ao vivo. Pena. Coube a dezenas de milhares de pessoas terem o privilégio e emoção de sentirem a encenação magistral deste fabuloso ator. Desde sua partida, dia 12 último, algumas emissoras de TV reprisaram entrevistas ou simples depoimentos. Inveterado fumante, hábil jogador de cartas, ávido acompanhante das estréias do cinema e teatro, paciente em desligar os televisores, crente em seu ateísmo. Fez a esposa, a atriz Karin Rodrigues (estavam casados desde 1999, mas moravam em residências distintas), prometer, ao notar a morte chegar perto, que seu desaparecimento se devia exclusivamente às pitadas do fumo. As fumaças lhe fizeram desenvolver um enfisema gravíssimo. Porém, jamais abandonou o amor: teatro. Nasceu no centenário da Independência do Brasil – 7 de setembro de 1922, no Rio de Janeiro. Talvez tenha sido o paulistano mais carioca da história, ou o contrário. Como Autran venerava São Paulo... A cidade era citada por ele o quanto podia. A cultura paulistana orgulhava o ator com ‘A’ maiúsculo.
Aos 85 anos, interpretava o protagonista da peça “O Avarento”, a 90ª de sua carreira, iniciada em 1949, profissionalmente, a convite de Tônia Carrero. “Foi a decisão mais acertada que tomei na minha vida”, dizia. Antes, advogava. Era chato. “Tenho pena daquelas pessoas que acham chato seu trabalho”, afirmava. Era ateu, mas balbuciava ‘graças a Deus’ para comemorar o sucesso inevitável das peças nas quais compunha o elenco. Estas peculiaridades fixaram Paulo Autran como um sujeito bastante predestinado. Tinha vocação e talento ao mesmo tempo, e isto era (e ainda é) quase milagre na profissão de ator. Além de “Terra em Transe”, fui seu fã em “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” (2006), seu penúltimo papel na sétima arte. O derradeiro personagem foi o professor estranho de “O Passado” (2007), filme de Hector Babenco que está para estrear. Era uma ponta, somente. São engraçados esses atores... Encenam até na hora ‘H’. Paulo Autran veio ao mundo e saiu dele em um feriado nacional. Queriam que os ‘pagantes’ estivessem vendo o destino ser traçado. Vimos, Paulo.