Um dos perdidos de Hitchcock (publicado originalmente em 4/10/2007)
Vamos nós de novo com Hitchcock. Ficar sem ele algum tempo é heresia. Portanto, falaremos de um dos mais nobres contos. O único a ser refilmado pelo Mestre do Suspense, em seus 55 anos de carreira, “O Homem que Sabia Demais” (1956) visita a África. No Marrocos, casal e filho passam férias. De repente, num dos dias de veraneio, um homem morre nos braços do chefe-de-família, Ben McKenna (James Stewart, quase esgotado com papéis de bom-moço nos roteiros de Hitchcock). Mas antes de partir, o moribundo balbucia o segredo: está no ar uma trama internacional de assassinato. E, para piorar, o filho de McKenna, Hank, é seqüestrado pelos conspiradores, para que o personagem de Stewart não dede o caso à polícia. Inicia-se aí, como de praxe nas fitas hitchcockianas, o corre-corre tradicional pela informação suada, de desespero aterrador, ameaças aviltantes, reviravoltas cortantes. Como todo modelo Hitchcock, o enlace final é, ao mesmo tempo, simples e bastante bem humorado.
“O Homem que Sabia Demais” foi, além de ter o destaque pela refilmagem (o longa-metragem original foi rodado em 1934), possui outra filigrana: a atriz Doris Day dirigida por Alfred Hitchcock. À época com 31 anos, Doris era já demasiadamente conhecida por seus dotes de cantora. No drama, a garganta é usada não só para reproduzir o texto em si, mas, também, cantar. O Oscar que a película obteve, por conseguinte, recaiu na música “Que será, será”, interpretada brilhantemente por ela, nos momentos em que mima o filho Hank. A canção tem papel crucial no longa. Não apenas esta. A cena que antecede o fim se passa com a orquestra de Bernard Herrmann. Ele próprio a coordena, com sua batuta, em frente às câmeras, instantes antes do assassinato. São 12 minutos sem qualquer diálogo. É de se babar com a categoria com que a seqüência se dá. Passo a passo, milimetricamente compelido. Quando chega hora de bater os pratos, o público treme. O pavor fica no colo de Hitchcock, o sádico.
Mais um detalhe para dar mais vida à obra: “O Homem que Sabia Demais” esteve, por décadas, na lista dos ‘cinco filmes perdidos de Hitchcock’. Isto porque o diretor comprou de volta os direitos das fitas “Janela Indiscreta” (1954), “Um Corpo que Cai” (1958), “Festim Diabólico” (1948) e “O Terceiro Tiro” (1955), além do tema desta coluna. Passou o legado à filha Patrícia. Apenas em 1984, 46 anos da estréia do mais antigo deles, o quinteto foi relançado nas salas de cinema, com estrondoso sucesso. Patricia, hoje com 79 anos, aparece em praticamente todos os capítulos extras dos DVDs do pai famoso. Não é para menos. Além de ter compartilhado ao lado do pai famoso bastidores de vários trabalhos dele, ela tentou ser atriz, sempre encostada no brilho do ‘velho’. Esteve em “Pacto Sinistro” (1951) e “Psicose” (1960), por exemplo. Porém, ela contribuiu à sétima arte de outra forma: dando a liberdade aos ‘cinco filmes perdidos’. Nada mais bonito que isto. Os fãs agradecem para sempre...