No fundo do poço havia um Touro (publicado originalmente em 22/8/2007)
Martin Scorsese estava acabado na década de 1970. Havia rodado “Taxi Driver” (1976), mas que isso importava? Aos trinta e poucos anos, sua profissão de diretor de cinema podia estar rodeada de fogos de artifício, porém, brilhos ofuscantes demais. Mergulhado nas drogas, Scorsese se via com seu casamento reduzido à tralha, simplesmente dita. À sua volta, ninguém o respeitava. Notavam no cineasta a nuvem negra que pairara anos antes em Marilyn Monroe, atingira há pouco Elvis Presley. Ele seria mais um. Em frangalhos, sua morte era aguardada com o obituário já catalogado: o diretor rebelde que não segurou o próprio ímpeto pessoal. O talento nas seqüências inesquecíveis de “Taxi Driver” era espantado com o fúnebre estado de Scorsese. Aquela onda de violência, o sangue caindo como catarata, enfim, o estoque de ar do homem de barba negra e semblante depressivo se esvaia aos passos mais ligeiros. O que ainda o mantinha em pé era um projeto amalucado de Robert DeNiro.
Em 1974, DeNiro apresentou a Scorsese uma idéia: filmar a carreira de Jake LaMotta, famoso boxeador dos anos 1930 e 1940. O ator lera a biografia do lutador e se encantara pelo personagem em si. Esboçou um roteiro sem vergonha e entregou ao amigo. Ele mesmo, DeNiro, se encarregaria do personagem principal, interpretando-o. Após anos de relutância, Scorsese topou a empreitada, jamais tendo filmado uma história de dentro dos ringues. Nada sabia sobre lutas e boxe, ainda que sua vida ultimamente tivera sido vários rounds sem o ‘plim’ de encerramento. Para rodar, DeNiro preferira em duas partes: na primeira, as cenas do boxe em si (teve aulas com o autêntico LaMotta) e as do drama, com conflitos, diálogos pesados etc; a segunda e mais impressionante era a que o ator deveria entrar em regime de engorda e inchar uns 30 quilos, para, dessa forma, representar fielmente seu ídolo na fase de decadência. A equipe achava melhor maquiá-lo, para que sua saúde não fosse estragada por mero trabalho. DeNiro recusou. Estava disposto ao tratamento. O resultado foi demais de esplêndido.
Nos sets, Martin Scorsese se livrava se sua sepultura adiantada. Revivia-se ali. Com o parceiro DeNiro, dedicou-se ao projeto como se estivesse a ponto de fazer um transplante de coração. Deu-se a reviravolta. “Touro Indomável” (1980) estreou, encheu os ecrãs, devolveu a auto-estima do diretor e, de brinde, colocou o cinema em novo patamar. A fita, considerada até hoje modelo de filmagem e de edição, figura como o melhor filme das décadas de 1970 e 1980. E não é exagero. Tudo nele tem a pitada do dantesco, do gigante. A começar pela música cortante e melancólica de Robbie Robertson. Com Thelma Schoonmaker e Michael Chapman talvez ficaram os dois toques de Midas: a já citada edição empolgante e a direção de fotografia, que apontou o preto-e-branco como solução para toda a vermelhidão do sangue espirrado nos confrontos dos boxeadores. Xeque-mate de gênio. A magia que faltava à conclusão da película. O filme, por fora, estava bem acabado. Por dentro, reluzia feito ouro.
DeNiro era LaMotta. Ponto. Encarnou o homem de vida desregrada, ciumento à beira daquela loucura sem culpa, despreocupado e pronto para socar quem estivesse no seu nariz, mesmo que este ser fosse Vicky Thailer, sua esposa. Coube a Cathy Moriaty dar vida a ela. Cathy era atriz amadora e procurava emprego quando Joe Pesci, intérprete de Joey LaMotta, o irmão mais novo do lutador, a indicou ao posto. Neste trio, o filme se dava perfeitamente. Transbordava ali as agruras de Scorsese, aquele diretor depressivo, reprimido, revoltado. Ele, seu pai Charles Scorsese e o então jovem John Turturro fizeram participações em “Touro Indomável”. Explicar, contar a história e seus pormenores seria leviandade. Tem de vê-lo e bebê-lo. É tal como disse uma vez, em italiano, Glauber Rocha, ao apresentar “A Idade da Terra” (1980), o trabalho derradeiro dele na sétima arte: “Esta não é uma fita para explicá-la. As pessoas precisam vê-la e senti-la. Simplesmente.” Sublime até não poder mais.