À revelia (publicado originalmente em 1º/8/2007)
Ao assistir a avant première de “Crepúsculo dos Deuses” (1950), um dos donos da Paramount Pictures, empresa responsável pela distribuição da fita, disse, furioso, ao diretor Billy Wilder: “Você é um irresponsável! Não sabe o que está fazendo!” Na verdade, o tal manda-chuva da Paramount não sabia sobre o mundo da sétima arte a sua volta. “Crepúsculo dos Deuses” trata dos bastidores dos sets e todos os desdobramentos. É um filme para e dedicado ao cinema puro dos anos 1930 e 1940. Nesta obra, a veterana atriz Norma Desmond (Gloria Swanson, afastada na vida real das filmagens há anos) saudosa de seu sucesso da época do cinema mudo, decide montar e elaborar, ela própria, um roteiro triunfante para o bravo retorno aos ecrãs. Para tanto, compele o jovem e frustrado cineasta Joe Gillis (William Holden) a fazê-lo. Gillis havia caído na mansão de Norma por acaso, quando era ameaçado devido ao não-pagamento do carro dele. Havia uma garagem vazia. Ele, ao notar o mel, fincou-se lá.
Como na maioria dos longas-metragens de Wilder (de “Quanto Mais Quente Melhor” – 1959 e “A Montanha dos Sete Abutres” – 1951), este começa também como uma narração. É a de Gillis, já morto na piscina da casa da babélica atriz. “Sempre quis ter uma piscina. Agora eu a tinha”, soçobra o falecido, cinicamente. No script original, há a seqüência em que o defunto Gillis papeia com outros seres gelados num necrotério, logo no início do filme. Mas a Paramount resolveu retirá-la de lá por achá-la “fúnebre demais”. Porém, não se perde muito. À medida que a trama avança, a história toma conta inteiramente. Vemos de que maneira Gillis mergulhou ao além naquelas águas azuis. Norma e o roteirista têm uma relação complexa. Ele está lá pelo bom salário e vê ali uma forma de se livrar da pobreza e desfrutar do bom e do melhor. Ela quer dominá-lo, se casar e mantê-lo preso no barbacã. A propósito: o roteiro escrito por ela era horrível – Gillis teria muito trabalho naquelas tantas páginas.
“Crepúsculo dos Deuses”, em diversas listas de pesquisas acerca do melhor filme do século 20, compete com “Cidadão Kane” (1941) acirradamente. E tem suas razões para sê-lo. Nada causticante, a fita de Wilder se embrenhou nas entranhas da sétima arte. Tudo o que se observa possui pontos de realidade. Quando Norma vai aos estúdios da Paramount visitar Cecil B. DeMille, é ele, em pessoa, quem a atende e fala: “Olá, minha jovem.” O diretor de “O Maior Espetáculo da Terra” (1952) quis participar da fita de Wilder, assim como outros astros do cinema. Em outra cena, vemos uma mesa e jogo de baralho. Quem está ao redor? Buster Keaton, botado no ostracismo após período de brilho no cinema mudo. Há ainda Erich Von Stroheim, roteirista, ator e diretor. Stroheim dirigira Swanson em 1929 no “Rainha Kelly” e se desentendera com ela. Duas décadas mais tarde, reencontraram-se nos sets de “Crepúsculo dos Deuses”. Papel: mordomo de Norma Desmond. O destino nos prega peças...
Ao locupletar seu trabalho, Wilder montou um dos melhores enredos de todos os tempos. Deu fôlego a carreiras até então à beira do abismo, como a de Swanson e Stroheim. A música de Franz Waxman dá o tom sombrio à obra. O trecho final, a descida de Norma da escada, com ela totalmente louca em seus delírios, está embalado com o tango macabro do compositor. Aliás, a trilha sonora da personagem de Swanson é o ritmo típico da Argentina. Os figurinos da superpremiada Edith Head (8 Oscars estão em seu currículo) ratificam “Crepúsculo dos Deuses”. O longa, na festa da Academia de 1951, foi indicado a 11 estatuetas. Ganhou só três: direção de arte em preto-e-branco, trilha sonora e roteiro. Gloria Swanson, Billy Wilder, William Holden, Erich Von Stroheim saíram das respectivas categorias de mãos abanando. Talvez os votantes deram ouvidos àquele executivo da Paramount e os prêmios ficaram “a ver navios”. Entretanto, a história fez justiça ao filme. Como sempre acontece...