É você mesmo? (publicado originalmente em 9/5/2007)
É engraçado ver e rever determinados filmes. Tem-se uma nova releitura, outra análise, muitos detalhes não vistos na vez anterior. Mas quando se gosta de cinema esses ‘sacrifícios’ são necessários e categóricos. Aconteceu isso, por exemplo, com “Rain Main” (1988). Assisti à fita tempos atrás. E esqueci dela completamente. Nada, a não ser certas cenas, ou quaisquer frases dos personagens, me vinha à memória. Então, o longa-metragem caiu em minhas mãos novamente. A história dos irmãos Babbit, aos poucos, clareou a minha cabeça. Posso ter dado a mesma risada, ou sequer expressar esta ou aquela emoção. Evidentemente, as constatações óbvias são à força: o tempo passa e acumulamos idade, experiência, vivência. Sabemos mais. Algumas situações de “Rain Main” que não me fizeram rir no passado, agora dão uma baforada diferente. As atuações de Dustin Hoffman e Tom Cruise são extraordinárias, mais a do primeiro. Isso marcou e ficou. Não há revisões, remarcações que apaguem isto.
Quando vi o filme pela primeira vez, veja só, tinha noção zero do que era autismo ou o que era ser autista. Sabia da ‘anormalidade’ do personagem de Hoffman (Raymond), mas parava por aí. Toda graça nas atitudes dele para mim soava como mera doença ou perturbação. Porém, nesta última vez de espectador, já totalmente ciente desta polarização privilegiada do mundo dos pensamentos, de fato compreendi melhor as coisas. Hoffman também ajuda a ensinar. Sua interpretação forte e contagiante dá ritmo da fita. E o autismo de Raymond só entrou em pauta no roteiro porque o próprio ator deu a sugestão. Queria o ‘algo mais’ do que apenas um personagem ‘amigável e feliz’. Tive com ele a igual sensação com Al Pacino em “Perfume de Mulher” (1992), quando o ator encarna o militar deficiente visual com uma perfeição de fazer inveja a Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Ao invés de ter Cruise na contracena, Pacino tinha Chris O’ Donnel. Dois atores superexperientes com dois em início de carreira.
Com Dustin Hoffman, de tão bom que está em “Rain Main”, pergunta-se: “É você mesmo?”. O roteiro mostra Charlie, um vendedor de carros usados, ganancioso e ambicioso. Quando o pai morre, e sabe de uma possível herança, descobre que tudo foi passado para um único beneficiário. Por não se conformar, começa a investigar quem poderia ser o tal felizardo. Descobre que possui um irmão mais velho, Raymond, um pouco diferente. Para conseguir o dinheiro, Charlie seqüestra Raymond. Na viagem, o caçula descobre peculiaridades do primogênito. Usar cuecas da mesma marca, comer nos horários cravados, tomar banho sempre do jeito igual. Para Charlie, trata-se de apenas frescuras. Mas a forma tenra e meiga do irmão autista conquista o antes sem paciência vendedor de carros. A direção de Barry Levinson (o mesmo de “Bugsy”, de 1991, “Vingança Adormecida”, 1996, e “Mera Coincidência”, 1997) é tão detalhada que, por mais que se tente percebê-la, passa incólume. Levou o Oscar da categoria.
Mas teve mais prêmios. Hoffman levou o seu como melhor ator. O filme foi contemplado com o Oscar principal e o de roteiro. Ou seja, ganhou nos quesitos mais importantes, faltando somente o de atriz. Talvez a película não tivesse feito tanto sucesso se Steven Spielberg estivesse à frente dela. Por meio ano, o diretor de “Tubarão” (1975) e da série “Indiana Jones” (década de 1980) foi o titular da cadeira de diretor de “Rain Main”. Entretanto, passados seis meses da produção, Spielberg deixou o projeto para cuidar exatamente de mais um “Indiana Jones”, a “Última Cruzada”, lançado ainda em 1988 e ganhador da estatueta de efeitos sonoros. Cada qual com sua praia. Spielberg não tem até hoje delicadeza suficiente para comandar uma história cheia de emoções como “Rain Main”, basta ver o estrago feito em “O Terminal” (2004). Desta feita, nem poderia me recordar de “Rain Main” como o filme belo que é.