Pelas asas de Clarence (publicado originalmente em 28/3/2007)

Antes de “A Felicidade não se Compra” (1946), havia visto poucos filmes cujo protagonista era James Stewart. De forma franca, apenas três singelos trabalhos dirigidos por Alfred Hitchcock: “Um Corpo que Cai” (1958), “Janela Indiscreta” (1954) e “Festim Diabólico” (1948). Então, caiu-me nas mãos a fita que me referi na primeira linha deste artigo. Se me atrevesse a traçar um paralelo entre o trio de obras hitchcockianas e o personagem do filme de 61 anos atrás, descreveria sua encarnação de George Bailey como o sujeito inocente que se sente culpado devido ao acontecimento das situações. Evidentemente, esta minha afirmação seria (e é) injusta e pretensiosa demais. “A Felicidade não se Compra”, dirigido por Frank Capra, é uma história de otimismo, superação e afagos carinhosos, fatos que geralmente ficam do lado de fora dos trabalhos do Mestre do Suspense. Capra encaminhou para os seus espectadores um conto-de-fada infantil, com vilões, mocinho, romance e, é claro, final feliz.

Stewart interpreta Bailey, um moço sonhador que mora na cidade de Bedford Falls. Não é seu desejo passar a vida toda lá. Mas as circunstâncias o fazem girar a roda da sorte de sua biografia. O pai morre cedo e ele, mais cedo ainda, precisa cuidar da empresa de crédito que já ajudou centenas de pessoas de Bedford Falls a comprarem as casinhas. Henry F. Potter (Lionel Barrymore), o banqueiro rico e mal do município, quer arrancar com unhas afiadas a empresa da família Bailey para seguir na cobrança de aluguéis altos dos pobres cidadãos de Falls. Ao perceber o escabroso intento de Potter, George entrega todo o dinheiro de sua tão esperada viagem pelo mundo ao irmão mais novo, Harry (Todd Karns). Mas ele continua inconformado com a vida. Mesmo assim, casa-se com Mary (Donna Reed), a paquera dos tempos de faculdade, e tem quatro filhos. Tudo caminha nos eixos, porém sem a vida de aventuras que George ansiava. Até que, por um descuido do tio Billy (Thomas Mitchel), a empresa da família corre o risco de ir à bancarrota. George não vê saída a não ser tirar a própria vida.

“A Felicidade não se Compra” trata de valores humanos. Então, para evitar o suicídio dele, lá de cima vem Clarence (Henry Travers), o anjo. Não um anjo qualquer. Ele espera ganhar finalmente suas asas se tiver sucesso com o caso de George. Clarence, sujeito bonachão e atrapalhado, procura ajudar o personagem de Stewart ao mostrá-lo como seria a vida de Bedford Falls se George Bailey não tivesse nascido. O espectador (e o próprio suicida) vê sua esposa se transformar numa solteirona, seu primeiro patrão virar mendigo, a casa aonde mora ser um local abandonado e seu irmão morrer afogado aos nove anos. Cético que é, o moço reluta em acreditar na obra divina. O arrependimento cavado por Clarence no coração de George custa a surgir. Neste instante, a alma norte-americana pós-Segunda Guerra (tanto Stewart como Capra estiveram envolvidos nas batalhas) ressurge nele.

No livro ‘A Magia do Cinema’, o crítico de cinema Roger Ebert informa que “A Felicidade não se Compra” ficou esquecido nas prateleiras das emissoras até os anos 1960, quando, exibido todo fim de ano (a tentativa de suicídio de George acontece na noite de 24 de dezembro), tornou-se clássico. A história ajuda a compreender mais o afã daquela época pós-guerra, quando a população dos Estados Unidos e o resto do planeta queria sublinhas a palavra ‘felicidade’ nos seus respectivos cotidianos. No momento em que sua vida vira 180 graus, o rosto de Stewart escurece. Sua barba por fazer, junto com as olheiras, dá o toque desesperador àquela situação. Maltrata a esposa e os filhos, vai ao bar e quer beber o máximo que suportar. Potter, o vilão, venceu. Entretanto, para tudo dá-se um jeito. O tal arrependimento força a porta para entrar, mas entra. Tudo acaba bem, com a frase ‘injeção-de-ânimo’ e a generalização da alegria. São bem sacadas as estratégias de Capra. Em algumas seqüências, nós, o público, sabemos em quem despejar nosso saco de dó. Às vezes em Billy, outras em George, também em Mary e nas crianças. O diretor nos instrui como bem quer. O roteiro avança em sua leveza total.

Tudo bem. Concordamos que somos meros instrumentos, como escrevi a pouco. Mas deixamo-nos guiar por filmes talentosos. Pelas asas de Clarence, saboreamos uma história tocante, comovente e que ‘só melhora com o tempo’, segundo Ebert. Com o título original de “It’s a Wonderful Life” (“É uma Vida Maravilhosa”), “A Felicidade não se Compra” concorreu a cinco Oscars: som, edição, ator, filme e diretor. Não levou estatuetas. A fita lembra vagamente “Assim Caminha a Humanidade”, de 1956, por contar a trajetória de uma família. Ou então “Cidadão Kane” (1941), por refazer o caminho de George, desde a infância até sua falência. Enfim, sempre assim: filmes bons lembram filmes bons.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 14/08/2009
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