As marionetes de Wyler (publicado originalmente em 7/3/2007)
Nestas três, quatro semanas que se passaram, vi algumas obras das décadas de 1930 e 1940 de diretores prestigiados na sétima arte. Dediquei-me, entre outras tantas tarefas, a deliciá-los, como um bom apreciador de cinema de qualidade. Vi, por exemplo, “Beco sem Saída” (1937), cuja direção é de ninguém menos que William Wyler, o mesmo de “Ben-Hur” (1959). Humphrey Bogart, com seus 37 anos, e antes de ser o rosto mais conhecido no planeta com “Casablanca” (1943), dá as caras neste filme totalmente rodado nos estúdios da Samuel Goldwyn Company (naquela época, levar câmeras a fora das ‘fábricas’ era considerado heresia). Bogart dá vida a Babe Face Martin, famoso bandido da região pobre de Nova Iorque, que, ao regressar rico e bem de vida à sua terra humilde, depara-se com situações deprimentes e inconstantes. A nobreza da fita está em seu enredo seco e dramático. Há, em “Beco sem Saída”, vários aspectos a serem analisados. Primeiro, o grupo de delinqüentes juvenis que vivem na vadiagem enquanto observam o movimento da família abastada residente a poucos metros deles. Os atores adolescentes (alguns nem tanto) eram amadores e a maioria deles foi aproveitada em dois longas-metragens produzidos logo um ano depois: “Anjos de Duas Faces” (1938) e “Os Anjos Lavam suas Faces” (1939). O roteiro de “Beco sem Saída” ajudou-os neste sucesso estrondoso.
Outro detalhe a ser apontado é o formato cinematográfico. A fita inicia com texto explicativo sobre as ruas nova-iorquinas. “Toda rua em Nova York termina num rio. Por muitos anos as margens do Rio East ficaram cobertas pelo lixo vindo dos cortiços. Mas os ricos, vendo que o curso do rio era pitoresco, moveram suas moradias na direção leste. Assim, as varandas de apartamentos grandes têm a vista para as janelas dos cortiços”, começava o texto. Isto era um recurso muito usado nas tramas de 60 ou 70 anos atrás. Basta se lembrar, por exemplo, de “Jejum de Amor” (1940) e sua desculpa de que “todos os jornalistas interpretados aqui não são baseados nos da vida real”, exibida em forma de tele-prompter aos espectadores antes da primeira cena ir ao ar. “Beco sem Saída” também tem algo dos filmes noir franceses. Dá a impressão, pelos estúdios muito bem notados, dos sons etc., de uma produção pobre. Na verdade, é o contrário disso. O longa, de tão prestigiado e aplaudido, concorreu a quatro Oscars: melhor filme, direção de arte, fotografia e atriz coadjuvante (Claire Trevor, intérprete de Francey, a ex-namorada de Martin, que após o abandono do amado se tornou prostituta). Referi-me ao roteiro antes como uma força. E é, de fato. O caos em que Martin reencontra seu bairro tem a dose extraordinariamente imperfeita. Ele vê a desgraça na qual os moradores vivem. A juventude se tornará muitos Martins no futuro, sem perspectivas, sonhos, fé em algo. Tudo em completa ruína.
Talvez seja o filme em que o confronto de classes mais se nota. Há, em espaços iguais, a parte remediada e a sem nada no bolso. De um lado, os garotos vestidos com trapos. No oposto, o menino entojado que é coberto por ternos, perfumes e é bem penteado. À direita, Martin, o mau-feitor, com as roupas caras, dinheiro de sobra e charme irresistível. À esquerda, seus ex-amigos batalhando por um emprego mais digno, por sobrevivência e honestidade. Wyler maneja estes quesitos com maestria e técnica apuradas. Instrui-os como se fossem marionetes, títeres, a seu bel prazer, como um ótimo diretor deve realmente trabalhar. O transbordamento se deu, entre outros, pelo conjunto dos jovens, já citado aqui. É a conseqüência. (Deste grupo adolescente, uma marca bizarra: quatro ou cinco deles morreram antes de completarem 50 anos, pelas mais diferentes causas – ataques cardíacos, a cirrose, câncer etc.) “Beco sem Saída” é intrigante, impactante e triste. Enfim, uma realidade exibida a esmo.
Além de “Beco sem Saída” e “Jejum de Amor”, com um Cary Grant impagável, assisti ainda “Desencanto” (1945), de David Lean (mesmo de “Laurence da Arábia” – 1962), “A General” (1927), a obra mais conhecida do ator e comediante Buster Keaton, “Bola de Fogo” (1941), “Arroz Amargo” (1949), que apresentou ao mundo as curvas de Silvana Mangano. Aos poucos, em intercalações nesta coluna, darei a vocês um esboço de cada um deles. Destes, destacaria de bate-pronto a fita de Keaton, por sua singeleza e simplicidade, unido à bela técnica (este, ao contrário de “Beco sem Saída”, possui cenas externa, e em 1927!), e “Arroz Amargo”, pois sou fã incondicional do neo-realismo italiano. E todos em preto-e-branco.