“HitchcockTruffaut” (publicado originalmente em 24/1/2007)
Hitchcock. Já sei... Mais uma coluna sobre ele. Deve ser a décima. Não, a vigésima. Nem tem assim tanta importância. Gente boa é para ser lembrada a eternidade. No entanto, hoje este espaço no qual predominam filmes, o tema central será um livro. Trata-se de “HitchcockTruffaut”, escrito tudo junto mesmo. Reeditado no Brasil em 2004, a obra mostra explicitamente um Alfred Hitchcock como nunca se viu. Naquelas páginas, os adoradores dos filmes dele saberão em quais fitas ele se arrepende de ter escalado tal ator ou atriz. Saberá os porquês das produções que fracassaram. Entenderá muito bem dos truques utilizados por ele em tal trabalho. Descobrirá cada passo dado por Hitchcock. Onde o diretor inglês pensou em arriscar. Aonde soube inovar. Vai além: desvenda segredos antes jamais revelados sobre sua vida a dois, desde que conheceu a esposa Alma Reville, inicialmente a parceira de sets de filmagem. Por trás destas máscaras caídas, o responsável por conceber o livro, claro, está o diretor francês François Truffaut. Truffaut, fã incondicional de Hitchcock, batalhou como aquele foca jornalista em começo de carreira. Notem: Truffaut já era um renomado profissional da sétima arte.
Para conseguir a sensacional entrevista, o francês penou. Porém, no bom sentido. Viu a maioria das películas do inglês, desde o período mudo, nas décadas de 1920 e 1930, leu as peças de teatro nas quais se basearam alguns dos filmes de Hitchcock, enfim, penou. Chegar perto do ícone demorou. Ao lado de um amigo, Truffaut viajou atrás do ídolo. Há no livro a fantástica história onde ele se molha todo ao tentar perseguir o diretor. Ao se reencontrarem, Hitchcock se lembra e, ironicamente, solta: “Toda vez em que jogo uma pedra de gelo num copo de uísque me recordo de você.” Quando de fato combinaram a conversa, Truffaut elaborou um superextenso questionário de 500 perguntas. O roteiro da entrevista despejava cada mero detalhe de cada fita do diretor de “Intriga Internacional” (1959). A edição de três anos atrás, existem explicações para estes apetrechos citados pelo Hitchcock. Ele narra como deixou o sonho de ser engenheiro para se tornar assistente de criação de arte, onde elaborava os cartazes de fitas no fim dos anos 1910. Ainda nestes rodeios cinematográficos, Hitchcock revela para Truffaut a noite em que entrou num clube de strip-tease sem saber. Pior: estava com Alma a tiracolo.
“HitchcockTruffaut” é recheado de fotos, anotações, recados, observações, destaques e alguns desenhos. O tamanho esmero com que o inglês tratou seus trabalhos é escancarado pelas perguntas curiosas de Truffaut. O francês se esbanja ao leitor como um espetacular conhecedor da filmografia do ídolo. Questiona e emite opiniões que apenas um crítico de cinema (Truffaut exercia este cargo na revista “Carthiers du Cinema”) e cineasta (ele filmou 26 roteiros em 28 anos de carreira – morreu em 1984, aos 52 anos, devido a um tumor cerebral) poderia fazer. “Porque você não escolheu este outro caminho?”. “Não acha que daria certo se filmasse desse jeito?”. “Confesso que este filme, para mim, deixou a desejar”. Este tipo de indagações, que podem soar provocativas, ofensivas. Na verdade, são somente sinceridades postas para fora, que recheiam a obra literária. A entrevista se deu em não mais que poucos dias. Foram horas gravadas, centenas de fotos tiradas (o livro tem nas primeiras e últimas páginas uma dezena de imagens do papo da dupla, com várias poses de ambos)... A reedição compõe o prefácio do professor de cinema da USP Ismail Xavier, além do próprio texto de François Truffaut.
São 345 páginas líquidas, ou seja, descontadas os créditos, introduções e conclusões. Fora das prateleiras brasileiras desde meados da década de 1980, “HitchcockTruffaut” ganhou reedição graças a empresa Companhia das Letras. Totalmente repaginada, bem cuidada e abrilhantada, a obra é uma legítima aula de cinema, espécie de mini-faculdade em ricas páginas. “HitchcockTruffaut” gaba-se.