Último pronunciamento (pubicado originalmente em 6/12/2006)

Em um de seus últimos pronunciamentos, o diretor inglês Alfred Hitchcock (cuja coluna não se cansa de citá-lo) disse a um auditório ansioso por ouvi-lo: “Dou um conselho a vocês: se esforcem ao máximo para fugirem da cadeia. É um lugar ruim.” Explica-se. Hitchcock foi “preso” aos cinco anos de idade, a mando de seu pai, William, católico fervoroso. O motivo: seu comportamento aquém do mais educado possível. O pai do garoto Alfred pediu a um policial, amigo seu, para arrastar o menino até a penitenciária mais próxima e deixá-lo lá por cinco minutos. Era o castigo pela desobediência do pequeno Alfred. Isso aconteceu em meados de 1904 em Leytonstone, uma cidadezinha da capital da Inglaterra. O trauma de se ver engaiolado, sem saber se sairia detrás das grades foi tamanha que o já famoso Mestre do Suspense perambulou por este caminho em várias de suas obras. Sua imagem de bebê chorão, com as lágrimas escorrendo em seu rosto dentro daquela “jaula de animais”, como as cadeias eram denominadas na época (e ainda hoje), o acompanhou como uma sombra persistente em seus 80 anos e meio de vida. A frase que abre este artigo foi dita por ele em fevereiro de 1980, pouco mais de dois meses antes da morte, a 29 de abril daquele ano. Hitchcock proferiu aquelas palavras em tom de quase desmaio. A voz dele, que em estado normal não era grande coisa, na velhice só piorou. “Voz de boi se arrastando”, diria Nelson Rodrigues. Era isso. Ao lembrar-se daquele episódio de sua infância, 75 anos mais tarde, ‘sir’ Hitchcock se libertou. Desamarrou o último nó que o atava à vida.

Àquela altura, era seu fim de vida, o diretor de sucessos como “Janela Indiscreta” (1954), “Um Corpo que Cai” (1958), “Intriga Internacional” (1959) e “Topázio” (1969), mal conseguia se erguer sozinho de uma simples cadeira. Gordo, característica que o seguiu desde a adolescência, quando ele se dedicava a criar cartazes para promover longas-metragens, seu rosto só cabia a papa e bochechas típicas de um senhor bonachão. A recordação da detenção na infância aconteceu durante a entrega de mais um prêmio. O Mestre do Suspense recebeu inúmeros (o mais importante deles, sem dúvida, foi a nomeação de ‘sir’ dado pela Coroa Britânica). E não que ele tenha revelado seu pesadelo de criança naquele instante. Todos sabiam. Mas as circunstâncias eram completamente diferentes. Em fevereiro de 80, Alfred Hitchcock estava com sérios problemas renais, os quais haviam se manifestado pouco tempo antes. Além do excesso de peso, dificuldades para andar e falar, ele aparentava fragilidade. E é perfeitamente compreensivo para uma pessoa de 80 anos. Os participantes daquela festa viram, raros, a despedida de um mito. Estavam reunidos muitos astros do cinema. E todos eles aplaudiram apenas uma pessoa. Hitchcock falava pausadamente, para poder melhor respirar. Ao fim, depois dos olhos dele percorrerem a platéia inteira, bem atentos, veio a saudação com as mãos. Um aceno. Agradeceu Alma, sua esposa por 54 anos. E sentou-se novamente. Decretava-se ali o fim de uma era iniciada em 1925, 1926. Mais de meio século de carreira exposto a sangue frio, transmitido num singelo sorriso.

Nesse tempo todo de estrada, o diretor foi taxado de falastrão (“Atores deveriam ser tratados como gado”, disse certa vez), polêmico (em seus filmes, geralmente os protagonistas morriam antes da metade da fita) e revolucionário (inventou outra forma de fazer cinema, o suspense vigiado, onde comanda sem dó o público, a manipulação pelo talento). A Academia sempre o rejeitou. Não deram a ele um Oscar sequer (foi indicado cinco vezes e depois recebeu uma estatueta pelo conjunto da obra). Porém, o aval decisivo veio dos espectadores. Seus trabalhos enchiam as salas dos cinemas. Durante as exibições de “Psicose” (1960), por exemplo, havia um cartaz exposto na saída das sessões: Não contem o fim do filme!. Era o diretor impondo seu respeito perante seus súditos. Ao deixar os sets de Londres para ingressar no sonho hollywoodiano, Hitchcock penetrou em panteão difícil de se quebrar e dobrar. Mas com o brilho dele, reluziram também novas gerações de atores e atrizes. É responsável por revelar Grace Kelly, a princesa de Mônaco. Tornou Bernard Herrmann mundialmente conhecido por sua trilha de “Psicose”. Fixou a marca de galã de James Stewart e Cary Grant. Formou sucessores hitchcockianos, como o diretor francês François Truffaut. Enfim, deixou seu legado. A esposa Alma, que morreria somente dois anos depois de Hitchcock, também contribuiu. “Se ela não me agüentasse esses anos todos, tenho a certeza de que não estaria aqui, na frente de vocês...”, completou o marido Alfred, mirando a companheira. Aquela festa de premiação então prosseguiu, sem mais conselhos.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 07/08/2009
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