Bandidos (publicado originalmente em 27/9/2006)
Em 2003, o diretor Paulo Sacramento teve uma idéia interessante: submeteu alguns presidiários do Carandiru a um curso de como filmar. Ofereceu câmeras a eles. Obteve dessa maneira o ‘trocado’ esperado. Nascia o documentário “Prisioneiro da Grade de Ferro”. Simples assim. Sacramento reuniu o material, coletado em sete meses de gravações. Expôs ao público o que todos sabiam, mas nunca, ou quase nunca, havíamos visto: a maior cadeia da América Latina exibida às vísceras. As imagens cruas, diretas, sem meios-termos, à primeira vista chocam. À segunda vista, nos deixam inquietos. À terceira, nos revoltam. Na última visão, concluímos: eles acharam porque procuraram. As condições sub-humanas pelas quais viviam os condenados são mostradas a esmo. Em uma passagem, homens e mais homens se amontoam num cubículo para dormir. Compará-los a animais é a primeira sensação que temos. Estamos errados. Lá, estão em situação bastante pior. Sujos, jogados, sem espaço para as pernas mexerem, tentam apoiar a cabeça na cama, dura, sem travesseiro. Reunidos ali estão pessoas cumpridoras de pena por assalto a banco, assassinato, latrocínio etc. Merecem tudo aquilo? Talvez. A resposta demanda tempo, reflexões, estudos. Para alguns, eles não deveriam viver todos amontoados. Tinham de estar mortos, afinal, cometeram atrocidades dignas de prêmio Nobel da Desumanidade.
Para outros, são antes de tudo seres humanos. Portanto, têm de ficar isolados da sociedade, mas com um mínimo de decência. Nesses dois lados, a balança pesa para o primeiro, para a maioria das pessoas. E a fita de Sacramento esnoba essa possibilidade. O diretor ensaia seu filme-demonstração. É como se ele dissesse: vejam como vivem estes bichos. Neste rol de bichos, juntam-se os ratos, as baratas, moscas, pernilongos, lagartixas. Os roedores se esbaldam nos cafundós das grades. Correm ali, passeiam acolá. E, entre uma passada e outra, transmitem doenças. E essas enfermidades ficam sob responsabilidade de Dráusio Varela, que surge no vídeo tratando de um traficante (?), falsificador (?), estelionatário (?)... Vai saber... Em outro take, um dos que freqüentaram o curso de filmagem faz uma entrevista com um ‘tatuador profissional’. O material indispensável está todo organizado. E é o próprio preso quem narra seu malabarismo criativo: “motor de toca-fitas, cabo de escova de dentes, a caneta bic e arame de caderno”. Com esses apetrechos, o tal sujeito faz desenhos, imagens e escreve frases nos corpos de seus colegas encarcerados. Claro, sem as devidas preocupações de contaminação e transmissão de malefícios. Com “Prisioneiro da Grade de Ferro”, temos o privilegio de verificar a experiência humana levada às últimas conseqüências. Eles ‘se viram’ e aproveitam seus potenciais.
A fita foi exibida sábado pela TV Cultura (óbvio – só esta emissora destacaria na programação uma atração desse tipo, indispensável). Foi a segunda vez que a assisti. A primeira também foi nesta estação de TV. E o longa-metragem de Sacramento merece a transmissão. Doze meses antes de aquele complexo ser demolido, marcas pessoais de alguns presos ficaram eternizadas em película, por meio do trabalho do diretor, que também foi o roteirista. As cerca de 170 horas de um cotidiano abarrotado de confissões, arrependimentos, cantorias, orações, brincadeiras, consagram abstinência da vida. No Carandiru, ninguém tem a empáfia de desafiar os demais, olhos nos olhos, afirmando “sou homem”. Lá, todos, sem exceção, são arremedos de gente. O desfecho do filme é uma ode à sobrevivência. São três presidiários prestes a dormir. Acordam às cinco da manhã. Cara de sono. Eles mesmos preparam o café. Aparecem três pães. Eles filmam o metrô. “Que saudade de andar num desse aí”, desfere um. O outro capta uma bizarrice real: dois policiais que fazem a ronda bêbados. No canto, outro ‘vigia’ dorme sossegadamente, com o rosto coberto por um capuz, afinal, estava frio. Coitadinho... Enfim, o trio vê o sol nascer quadrado. Ou retangular. Esses bandidos, câmeras-men, testemunhas da história do Carandiru, não passam de, como denominei, bandidos. Vêem o sol nascer quadrado. Retangular...