Solidão (publicado originalmente em 9/8/2006)

Ainda estou para conhecer algo pior que a solidão. Penso, penso, nada me vem na cabeça para poder sequer comparar com a notável sensação de estar sozinho, único, ser ímpar. E o mais grave se dá quando somos solitários, mas com vários amigos em volta. Chimo era assim. Morava com a mãe em um bangalô do subúrbio francês destinado a descendentes de árabes e vivia sempre com todos os seus mesmos companheiros. Três patetas que nada acrescentavam a biografia do adolescente. Chimo tinha uma vantagem: adorava botar nos papéis seus sentimentos. Na escrita, se confessava, redigia os seus pecados, ele próprio se absolvia. Tudo ficava bem no final. Ou melhor, nem tudo. Existia aquela fagulha depressiva que o fazia enxergar seu destino. Sem perspectivas, ele morreria naquele canto de mundo. Nunca saberiam quem foi Chimo. E, também, para quem importava a vida dele? Era pobre em tudo. É triste ser só. Ter de esperar que os outros se preocupem com você. Ou sintam sua falta. E raramente isso ocorre. Na verdade, o individualismo prejudica severamente os mais fracos. Quando se deixa levar assim, nessa onda do mar que traga os frágeis, é tarde demais. O garoto francês estava à beira de se afogar. Aí, no passe de mágica que só o cinema é capaz de fazer funcionar, Lila chega.

Lila é a protagonista de “Lila diz...” (2004), fita francesa de bastante sucesso internacional. Ao aterrizar no submundo de Chimo, ela o transforma. É a paixão platônica que ferve dentro de ambos. A moça diz particularidades excêntricas, na dose certa que Chimo esperava de alguém. A ternura de Lila o derrete de imediato. Ternura calorosa, diga-se. Sem mais nem menos, se tornam íntimos. Sem mais nem menos, ela se torna sua confidente. Assim, sem mais nem menos, ele fica totalmente louco por ela. Não é difícil explicar a causa disso. Lila tem 17 anos. Loira de olhos taticamente verdes, sabe manipular seus vassalos e súditos. Anda com a bicicleta pela cidade inteira. Não mira aqueles olhos em ninguém. Só em Chimo. O rapaz, então, despe-se de sua solidão. Joga fora seus amigos infantis. A discrição se faz parceira dele. Por certo, a quem interessa sua felicidade extravagante? Ninguém, é claro. Deposita seus encontros com Lila no caderno. Agora, a caneta é maior aliada. Nem o concurso de redação indicado por sua professora, para Chimo começar uma bela carreira em Paris, o atrai tanto quanto ver Lila. Apenas ver, nada além. A garota o empurra para as fantasias. Faz a ele perguntas de tom sarcástico, pejorativo. E Chimo só lhe falta agradecer. A menina dos sonhos estava diante dele.

Vahina Giocante e Mohamed Khouas (respectivamente Lila e Chimo) tinham carreiras opostas quando se cruzaram em “Lila diz...”. Ela era atriz há sete anos, além de ser uma dançarina renomada. Ele havia trabalhado somente em uma série desconhecida da França (depois, esteve em “Munique”, de Steven Spielberg). O diretor Ziad Doueri estava em barco semelhante ao de Khouas. Na direção, apenas uma fita, de 1998. “Lila diz...” foi baseado no livro escrito por Chimo. Sim, o personagem existiu e escreveu as memórias dez anos atrás. Esqueçam o que escrevi antes sobre passes de mágica do cinema. Às vezes, a vida real vale bem mais a pena. Com sua curtíssima duração, pouco mais de 80 minutos, o filme impressiona mais pelo roteiro “sem censura” alguma. Chimo, o personagem, é o narrador da história. Lila, ninfomaníaca, é seu ego pelo avesso. Longas-metragens desse tipo seguem a trilha de “O Último Tango em Paris” (1973), “Lolita” (1962 e 1997), “Os Sonhadores” (2003) etc. São dramas cujo mote central é, sem exceção, a falta de defesa masculina para com o comportamento lascivo feminino. A característica principal é a de puro machismo, enquanto as mulheres mais soltas se esbaldam. “Lila diz...” segue na linha. A “femme fatale” contagia a fita toda, sem descanso algum.

O descanso, quem tem, é a solidão de Chimo. Apesar dos desdobramentos do filme, Chimo e Lila se atam. A amarra não se dá fisicamente, como quem for assistir a fita notará. É o nascimento da paixão avassaladora, mas com parcimônia. Culpa de Lila.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 01/08/2009
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