Documentário subversivo (publicado originalmente em 2/8/2006)
“Não eram gritos de quem estava apanhando. Eram gritos de quem estava levando os choques. Dava para distinguir pelo tempo em que estávamos lá.” A frase soturna, dita pelo jornalista Rodolfo Konder, é uma das tantas que povoam o documentário “Vlado – 30 anos Depois”, feito pelo diretor João Batista de Andrade. A abordagem do assassinato de Vladimir Herzog, a 25 de outubro de 1975, se deu após três décadas de respiração e reflexão. Todos da fita são companheiros de luta. Estavam no Brasil nos Anos de Chumbo da ditadura militar. Foram presos, torturados, humilhados. Entre eles, a maior virtude é ter sobrevivido. Andrade foi muito simples com este trabalho. Foi seco. Ficou com o nó na garganta a duração toda deste filme. Trata o assunto com um banquinho e uma câmera. Este estilo ‘João Gilberto’ de rodar uma história dessa estabeleceu-se definitiva na obra do documentarista e repórter. Aliás, “Vlado” é uma reportagem grande, não uma grande reportagem. Falta a ele dar um esmero a determinados assuntos. Mas vale de qualquer forma por ser um longa-metragem histórico para o país, assim como foi “AI-5 – O Dia que não Existiu”, documentário feito por Paulo Markun em 1998 só para TV. “Vlado” passa a limpo os trechos mais obscuros do Brasil nos últimos 50 anos.
Logo nos minutos iniciais de “Vlado”, Andrade, com microfone em punho, anda pelas ruas de São Paulo e pergunta aos transeuntes: “O que você sabe sobre Vladimir Herzog?”. As respostas são variadas, mas vergonhosas: “Não sei quem é”, “Ouvi falar, mas não sei muito sobre isso”, “Desculpe, não sei quem ele foi”. Alguns passaram na média: “Era um jornalista que foi morto, não é isso?”, “O Vladimir Herzog morreu na ditadura militar, que podia muito bem voltar, não é?”. Sim, vocês leram isso mesmo. Um dos entrevistados (engravatado, pasta misteriosa na mão) quer a volta dos militares. Pobre Brasil. Pobre de nós. “Conhecer o passado, para entender o presente e almejar melhorar nosso futuro”, dizia um ditado sobre a História. Como podem notar, nosso futuro será promissor. Voltemos à fita. Depois dos depoimentos dos populares, Andrade parte para os protagonistas. Eles não falam só de Herzog. A atração é o ambiente político nos anos 1960. Até que chega o AI-5. Péssima hora para Herzog, que estava fora, voltar ao Brasil. E retorna. Inicia um trabalho na TV Cultura. É perseguido. Membro do Partido Comunista Brasileiro, virou alvo fácil dos militares. O Doi-Codi o recebeu com os louros da educação. Posteriormente, o despejou num caixão com agonias do sofrimento mais vil.
As frases de Konder que abriram esta coluna são dos momentos em que o jornalista morto se encontrava numa das salas do tal Doi-Codi, talvez nos últimos instantes. “Depois, ligaram o rádio no volume alto e nos levaram para um outro andar. Na certa, era para retirar o corpo do Vlado de lá sem a gente perceber”, completa Rodolfo Konder com a voz gutural. Um fator importante citado no filme é a utilização do capuz. Markun dá detalhes preciosos sobre o cheiro, o pano, a sensação. Além deles, estão várias personalidades, como Mino Carta, Fernando Moraes, João Bosco, Dom Paulo Evaristo Arns, Diléa Frate, Clarice Herzog, Alberto Dines, Fátima Jordão etc. Eles destrincham o caso Vlado com a autoridade de quem passou por tudo aquilo. A foto de Herzog morto, com o cinto enrolado no pescoço, a farsa montada a seguir, a resistência pelo ato ecumênico na igreja da praça da Sé, centro de São Paulo. Está tudo ali, como um livro em que viramos as páginas ávidos por querer saber mais do tema. A tentativa de guardar o assassinato embaixo do tapete não foi boa idéia. A poeira levantada ali determinou o começo do processo de abertura política, que se consolidaria em novembro de 1989, com eleição direta para presidente. Herzog tornou-se símbolo de uma era, mito da escuridão militar.
Vlado não foi o jornalista mais brilhante do Brasil. Tampouco pode ter sido uma pessoa ímpar. Ele tinha defeitos como qualquer outro. Mas, ao morrer naquele submundo, virou ícone, virou lenda. Na trajetória dos governos ditatoriais, em praticamente todos os casos há um escorregão, um tropeço. Vladimir Herzog foi este desequilíbrio, esta síndrome de labirintite de um governo que cambaleava nas próprias pernas. “Vlado – 30 anos Depois” é documentário subversivo. Claro, na visão daqueles, como dizia Darcy Ribeiro, milicos.