Invasões de corações (publicado originalmente em 26/7/2006)

É de partir o coração toda a história de “As Invasões Bárbaras” (2003). Esta é seqüência da fita “O Declínio do Império Americano”, de duas décadas atrás. No filme de 2003, Remy, o professor de ideais revolucionários tem de se virar quando descobre que está com um câncer terminal. Distante do filho, Sebastién, um workaholic frio que trabalha na Bolsa de Valores de Londres; e sempre ao lado de sua inseparável ex-esposa, Louise, Remy quer passar seus últimos dias com seus velhos amigos, os mesmos da trama de 1986. Porém, como toda relação de pai para filho, o veterano professor hesita em aceitar a ajuda financeira do filho pródigo. Não que Sebastién queira ajudar. Pelo contrário. Ele está avesso ao pai. Detesta a vida que o pai levou, ao lado de belas mulheres e regado a muita bebida, deixando a companheira (mãe) e os filhos ao relento. Aos poucos, “As Invasões Bárbaras” se torna muito sentimental e carinhoso. O diretor Denys Arcand, canadense assim como as locações do filme, se esmerou no elenco escolhido e soube trabalhar bem com as peças que tinha em mãos. Lá, dá-se a impressão de que pouco se importam com figurino, maquiagem, ensaios, coisas do tipo. O resultado final ficou tão maravilhoso que tudo isso fica em segundo plano. O setor “humano” destaca-se mais.

Como foi todo rodado no Canadá, nós aqui da linha de baixo do Equador ficamos sem saber do que se tratava até a cerimônia do Oscar de 2003, quando a película ganhou o prêmio de melhor filme de língua não-inglesa. Ele foi também concorrente na categoria roteiro original. Dos participantes do drama, só conhecíamos o diretor, devido à história de 20 anos passados. Mas finalmente ele chegou ao Brasil. Ele, “As Invasões Bárbaras”, quero dizer. Arcand dedicou-se ao roteiro e, delicadamente, colocou nas páginas passagens antológicas, como quando Remy e seus amigos analisam, uma a uma, todas tendências que foram membros. “Fomos marxistas, leninistas, comunistas, trotskistas, também socialistas e maoístas”, comenta um. “E qual dos ‘ismos’ nós nunca fomos?”, indaga o outro. “Acho que não pertencemos ao cretinismo”, devolve o terceiro. E tudo em câmera em primeiro plano, lado a lado de cada pessoa sentada nas cadeiras no quintal da casa de inverno... Não são somente discussões de cunho político. Há as sexuais, ambientais, históricas e matriarcais... O que vale mais é a simples e pura amizade, aquela em que não existem limites para nada, com censura nula e preocupações sérias com os nossos sinceros camaradas. “As Invasões Bárbaras” prova que hoje ainda tem ‘a’ amizade.

Aos poucos, Remy (ator Remy Girard) se desintegra. Seu filho Sebastién e a viciada em drogas Nathalie (incrível Marie-Josée Croze), que cotidianamente injeta heroína nas veias do professor para que ele possa viver um pouco mais, fazem, a cada instante, de tudo para auxiliá-lo a reverter a grave enfermidade. Remy já não tem cabelos. Está cada vez mais fraco. Para completar, a outra filha dele, Gaëlle (Marina Hands), está viajando pelo mundo e apenas manda vídeos pela Internet, deixando seu pai à beira da emoção. Assusta em “As Invasões Bárbaras” a interpretação de Marie-Josée. Com seus olhões azuis, contornados pelos fios pretos dos cabelos, impressiona com o talento ao dar vida a uma drogada que vive constantemente a um passo da overdose. Ela é filha de uma das amigas-amantes de Remy. Curiosamente também tem problemas com a mãe, assim como Sebastién tem com o pai. Mas o que se dá com ela é o contrário dele: Nathalie é viciada em drogas, enquanto Sebastién é executivo bem sucedido. Essa inversão de valores traz à tona algumas situações tocantes na fita... Um exemplo é a cena na qual Nathalie leva Sebastién a uma casa onde se vendem drogas. Onde ele se daria muito bem, não fosse o conteúdo. “Deixa que eu vou lá sozinha. Estou acostumada com eles”, diz a jovem.

Nesse mundo onde todos de alguma forma se esforçam para cumprir a obrigação, amparando o pai, ou injetando drogas em um velho novo amigo, todos terminam o dia com a consciência limpa. Em “As Invasões Bárbaras”, todos ficam em volta de Remy, mas, como eles também sabem bem, o mundo continua além dessas fronteiras fechadas.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 31/07/2009
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