Lisa e Gilbert (publicado originalmente em 5/7/2006)
Quase sempre nos identificamos com algum personagem do cinema, teatro, televisão. Também há aqueles sobre os quais pensamos: “Porquê eles não existem de verdade?”. Encaixo-me mais nesta segunda categoria. Mas, claro, invariavelmente procuro espelhos pelos filmes afora. Quem no mundo gostaria de ser por um dia Hércules? Ou então ter o dom de voar do Superman? Mais: ser o dono da voz daquele discurso final de Charles Chaplin em “O Grande Ditador” (1940)? Quando era criança, foi “Superman” (1978) a fita que mais me impressionou. E havia muitos motivos. A capa, os vôos, as cores gritantes do uniforme, o disfarce de Clark Kent. Ainda costumo revê-lo. Devo tê-lo visto umas 50 vezes. Nunca é a mesma sensação. A história se repete com “Janela Indiscreta” (1954), do mestre Alfred Hitchcock, o qual não canso de citar nos meus textos. A bela socialite Lisa Carol Fremont está entre as três mulheres mais lindas do século passado. Como não podia ser diferente, quem deu vida a ela foi Grace Kelly. Aí basta. A primeira tomada dela, se aproximando de L.B. Jefferies (ator James Stewart), o fotógrafo da perna quebrada, é deslumbrante. Será que andam soltas por aí algumas Lisas Carols? O rosto desenhado com perfeição, olhos com azul-céu, voz delicadamente fascinante e seca.
Vamos adiante com ela. Além de fisicamente ser especial, seus gestos são carregados no colo pelo espectador. Faz de tudo para agradar o namorado acidentado. Sempre impecavelmente vestida, encanta com seu andar. O jeito sensual de se portar é pueril, frívolo toda vida. Leva jantares, auxilia o parceiro, convida-se para ficar com ele o resto do dia. Na verdade, há a intenção principal de Lisa para com Jefferies: casamento. Assim, como nem tudo é “perfeito”, o fotógrafo desliza nas propostas como as enguias fazem. Nesse ensaboado relacionamento, Lisa poderia sair da película, não poderia? Vinte e poucos anos, bem educada, sinceramente aproveitando sua vida. Na vida real, se repetiria o que ocorre em “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985), de Woody Allen. A ingênua Cecília se vê à volta com Tom Baxter, o herói das telonas que sai de lá para conhecer sua admiradora. Isto está entre meus sonhos dourados. Lisa ultrapassaria o limite da câmera e se encontraria comigo. Nada mais tórrido e inconveniente. Notem que não me refiro a Grace Kelly. É Lisa Fremont que deve vir me visitar com seus chapéus e lenços brancos. E, voltando a “Rosa Púrpura do Cairo”, “Janela Indiscreta” não terá a reviravolta por minha causa. Tudo acabará bem. Jefferies terminará ao lado da enfermeira curiosa.
Dessa forma, viveria como Gilbert Valence. Ele é o protagonista de “Vou Para Casa” (2001), o primeiro e único filme do longevo diretor Manoel de Oliveira, 98 anos, que vi. Quem encarna Gilbert é Michel Piccoli, ator francês que na época contava 75 anos. O personagem dele é ator consagrado de teatro, que pode escolher seus trabalhos. Mas tudo muda quando, após uma apresentação, recebe a notícia de que sua esposa, filha e genro morreram em um acidente automobilístico. Sobra-lhe o neto Serge, de sete anos. Com tudo desmoronado, ele e o garoto vivem bem. Porém, a convivência é bem pouca, porque Gilbert está sempre ocupado. Até que, durante uma gravação, ele sente que sua mente, cabeça e memória não são mais as mesmas. Decorar falas se torna difícil. Diz, então, a frase do título da fita. Desamparado, sobe as escadas rumo a sua cama, para descansar. Serge o observa. Um roteiro primoroso. Cenas cumpridas, sem interrupções, com os sons da rua, são a marca registrada da trama. Possui um tom poético maravilhoso. Então, queria ser Gilbert. Ir à mesma lanchonete, levando jornal, conhecendo o garçom. Carregando o neto com um amor incondicional, dando-lhe beijos. Depois, na solidão plena, deitar na cama e esperar o outro dia. Aguardar Serge me acordar. Vê-lo ir para escola.
Gilbert Valence e Lisa Carol Fremont são pessoas da ficção, mas que por mim estariam aqui. O primeiro, uma espécie de espelho meu daqui a 50 anos. A outra, companheira na jornada chamada de vida. Nessas peças pregadas pela vida, nos tornamos loucos. E esse tipo de insanidade sempre vale a pena. Ah, Lisa...