Miss Daisy (publicado originalmente em 28/6/2006)
Miss Daisy é uma senhora aparentemente simpática. Aparentemente. Aos 70 e poucos anos, ela insiste em atividades que não lhe são mais compatíveis. Uma delas é dirigir. E é em um acidente de carro que o filme “Conduzindo Miss Daisy” (1989) começa. Quando ela perde habilidade no volante, cabe ao filho, Boolie, um ocupadíssimo trabalhador, tentar reverter a situação. Será difícil, pois sua mãe é dá aulas de teimosia. Sem paciência, o quarentão contrata Hoke, motorista da terceira idade e negro, para levar Daisy aos encontros no clube com as amigas, e aos cultos da igreja. Antes, porém, Boolie, como um mouro insaciável, terá de convencer a matriarca a aceitar o novo empregado. Claro que ela o rejeitará. Nesse triângulo, os atores Jessica Tandy, Dan Aykroyd e Morgan Freeman cozem bem a trama do diretor australiano Bruce Beresford. Pode-se dizer que “Conduzindo Miss Daisy” é a história, indiretamente, que todos nós teremos algum dia na vida. Afinal, sonhamos em viver até os cabelos ficarem encanecidos totalmente. E, nisto, depender de pessoas estranhas é um recomeço que nem todos querem abraçar. A excêntrica Daisy é dessas pessoas. Vive nos Estados Unidos no fim dos anos 1940, passou da marca das sete décadas e sabe que sua próxima tarefa é pensar em seu epitáfio.
Ao utilizar atores experientes, o projeto de Beresford tomou corpo. Tandy filmou às vésperas de apagar as velas de seu 80º aniversário. Aykroyd, que havia trabalhado em fitas de gosto discutível, estava aos 36 anos em seu melhor momento (depois deste longa-metragem fez pouquíssimos filmes que valessem a pena). Freeman, aos 51, parecia contemporâneo da protagonista. Delicadamente, tudo estava a favor. E, no fim das contas, o enlace se concretizou. O Hoke de Freeman, por exemplo, fez da risada a marca registrada. E ele ria como um velhinho. Tandy incorporou a preconceituosa. Aliás, o talento demonstrado por ela foi gigantesco. Dedicou-se como se estivesse em seu filme de estréia. São dela momentos mais engraçados e comoventes da história, que compreende 25 anos, entre 1948 e 1973. “Conduzindo Miss Daisy” foi indicado a nove Oscars. Ganhou quatro: filme, atriz (Tandy foi a atriz com mais idade a receber o prêmio na Academia até hoje), maquiagem e roteiro adaptado. Os cinco que perdeu foram ator (Morgan Freeman), ator coadjuvante (Dan Aykroyd), direção de arte, edição e figurino. Na lista de premiações, estão ainda três Globos de Ouro, um Urso de Prata e um Bafta. Não à toa, com o passar do tempo tornou-se clássico. Quem assistir, certamente se identificará.
O tom singelo da película contribui demais para seu sucesso. Ao longo da trama, vê-se estradas e paisagens muito bem locados, os modelos de carros da época, e a ternura com a qual Daisy e Hoke se tratam com o passar do tempo. A amizade duradoura é o símbolo da fita. A antes ranzinza senhora dá lugar à compaixão e solidariedade fiéis para com o amigo-empregado-motorista-confidente que o personagem de Freeman se transforma. O diretor conseguir levar o filme sem apelações e, como um maestro, regeu sob sua batuta momentos mágicos do cinema, como por exemplo, a seqüência final de “Conduzindo Miss Daisy” em que Hoke dá colheradas de comida na boca de sua patroa, num gesto captado com extrema felicidade por Beresford. Jessica Tandy, que faria dois anos depois “Tomates Verdes Fritos” (1991), carimbou seu nome no cinema com sua Daisy. Ela, que morreu em 1994 aos 85 anos, estrelou “Os Pássaros” (1963), longa conhecido de Alfred Hitchcock. Foi das raras atrizes a estar em filmes de boa qualidade até o fim da vida – trabalhou nos dois “Cocoon” (1985 e 88), além do citado “Tomates...” e o tema da coluna. Detalhe: quando rodou “Tomates Verdes Fritos”, Tandy já sabia que tinha câncer, doença que a vitimaria três anos depois. E ela seguiu firme, sem descanso.
De certa forma, “Conduzindo Miss Daisy” veio na hora. A sétima arte prestou a homenagem a ela na forma de filme. Nas passagens de tempo da fita, quando a personagem envelhece aos poucos, se nota a vida dela passando em frente ao retrovisor do carro de Hoke. Daisy e Jessica Tandy, assim, se aglutinaram. E viveram.