Ataques (publicado originalmente em 14/6/2006)
A Copa do Mundo de 1938 aconteceu na França. Foi um torneio sem meias palavras no setor político. O planeta fervilhava governos superultradireitistas. A Europa estava a um passo de entrar na Segunda Guerra Mundial. Adolf Hitler e Benito Mussolini ditavam as normas. No Brasil, o recém-criado Estado Novo coroava Getúlio Vargas, e o país mergulhava, de cabeça, (em um chão bem raso) numa ditadura que perduraria até 1945. Ao mesmo tempo, brasileiros, assim como o resto da Terra, tentavam se reerguer depois da crise econômica de 1929. No ramo futebolístico, a bola tinha de seguir rolando. E está é a época da história do século passado que mais me toca, seja por um lado (político), seja pelo outro (as Olimpíadas de 1936 na Berlim dos nazistas e a Copa de 1938). Nas linhas abaixo, está um conto que escrevi dias atrás, inspirado, sobretudo, nas animadas brigas de dois adultos respeitados. Um, a favor do vascaíno Niginho como titular. Outro queria o flamenguista Leônidas da Silva na escalação da seleção brasileira. O título: “Ataques”. Vamos a história.
O clima era hostil na família Silva na véspera da estréia do Brasil no campeonato mundial de futebol. As discordâncias estavam centralizadas nas figuras do pai, Olegário, e do sogro dele, Onofre. E eram discussões fortes. “O senhor é um pulha!”, disparava um. “O senhor não tem razão alguma”, devolvia o outro. A polêmica, àquela altura, estava na escalação do time do técnico Ademar Pimenta. Olegário queria Leônidas como titular. Onofre desejava ver Niginho entre os 11.
A angústia de ambos tinha uma explicação em comum. Tanto genro quanto sogro estavam tensos porque a campanha da Copa anterior, a de 1934, havia sido um verdadeiro fiasco. Não que eles se importassem desesperadamente. O parentesco com o atacante do Flamengo era nulo. Mas as figuras de Leônidas e Niginho, que era do Vasco, representavam, para cada um, a auto-estima perdida.
O dia da estréia do Brasil naquela Copa finalmente chegara. O rádio ficava na sala. Em volta, estavam duas poltronas apenas. Não tinham mais cadeiras, nem tampouco sofá. Durante os jogos seguintes, a história se repetia nos mínimos detalhes. Discussões sobre Leônidas e Niginho não faltavam, e, momentos antes do apito inicial do juiz, os dois estavam nas respectivas poltronas. Olegário do lado direito. Onofre, do esquerdo. Foi assim durante os três confrontos que se seguiram, até a semifinal impávida e imaculada contra a Itália.
Nas duas Copas passadas, o Brasil nunca havia chegado tão longe. O dia 16 de junho, data do embate decisivo, era muito aguardado. É escusado afirmar que nesses dias anteriores Olegário não trabalhou. Dia 15, de madrugada, porém, ele se sentiu mal. Uma forte dor no peito. Duas horas e meia depois de sentir o primeiro sintoma da dor lancinante, Olegário não resistiu. A esposa dele, Isabel, disparou pelo corredor da casa chamando pelo pai, aos gritos. Em vão. Seu marido estava morto. O clima na casa da família Silva se modificou brutalmente.
“Pobre homem. Não verá a nossa redenção”, desabafou o sogro em frente ao caixão, durante o velório. Mas nem se lembrou do horário do jogo. Quando voltava para casa, ao lado da filha, a peleja estava quase no fim. A rua estava silenciosa. “Meu Deus! O jogo! Esqueci do jogo! Não acredito!”, berrou Onofre. Correu para casa.
Não conseguiu ligar o rádio a tempo de escutar o resultado. Teve de andar dois quilômetros até chegar na casa do outro vizinho que também possuía um rádio para saber o resultado final. Quando soube do placar – 2 a 1 a favor dos fascistas italianos – se revoltou. “Maldito Olegário! Viu o que fez? Perdi o jogo! Nós perdemos por sua causa!” O Brasil terminaria a competição em terceiro, ao bater a Suécia na disputa da medalha de bronze.
E Onofre também não veria o Brasil campeão de uma Copa do Mundo. Em 20 de abril de 1950, véspera da competição realizada no Brasil, que ele prometeu assistir a pelo menos uma partida ao vivo naquele estádio imenso que haviam construído, sucumbiu também a um ataque cardíaco.