Mãos, dedos... (publicado originalmente em 31/5/2006)

Quantos Joãos Carlos Martins existem no Brasil? Certamente, mais de uma dezena. Quem sabe uma centena. Mas, destes todos, posso apostar aqui, nenhum possui talento musical do pianista João Carlos Martins, nascido em S. Paulo, capital, em 25 de junho de 1940. Eu, do alto de minha tamanha ignorância, só vim a conhecer o trabalho dele quando, na verdade, Martins não podia mais executar seus movimentos. Explicarei no decorrer do texto... Vi o músico pela primeira vez em um programa de entrevistas da TVE, uma emissora carioca que era ultimamente sintonizada aqui na região do Vale do Paraíba na tevê aberta. Para ser bastante sincero, zapeava pelos canais até aterrizar neste. Martins falava sobre sua história de vida. Prestei atenção. Pianista desde a tenra idade, apresentou-se fora do país já aos 18 anos, com sucesso. Sua fixação pelo compositor alemão Johann Sebastian Bach era de assustar. Mas, durante uma partida de futebol, outra das paixões dele, sofreu um acidente, cuja séria conseqüência foi atingir seu maior triunfo: a mão direita. Tempos depois, o outro lado baqueou de igual maneira: a mão esquerda cambaleou. Aos 30 e poucos anos, estava com a carreira encerrada.

Essas lazeiras são contadas no documentário “Paixão Segundo Martins” (2004), da diretora da Sibéria, Irene Langemann. Não é uma fita fácil de ser achada. Exibida pela TV Cultura mês passado, a fita de 95 minutos conta as infortunidades vividas pelo pianista. Quem a distribuiu, dois anos atrás, foi a revista Istoé. Quando assisti ao longa na estação paulista, fiquei impressionado. É como se fosse uma entrevista acompanhada passo a passo. Martins revela-se emotivo, carismático e surpreendente. Tabela com Pelé, conversa de maneira descontraída com Éder Jofre, fica íntimo ao lado dos irmãos mais velhos. Com cada personagem, o músico tem alguma relação. Aos 18 anos, Martins estava com seus concertos no exterior. Pelé, nascido no mesmo ano, encantava os escandinavos suecos ao ganhar a Copa do Mundo de 1958. Com Jofre, o restabelecimento da carreira do boxeador, na década de 70. Foi o pianista, quando parou momentaneamente de tocar, quem promoveu a luta pela disputa de mais um cinturão de ouro. Em “Paixão Segundo Martins” são exibidas também as demais empreitadas de João, como quando ajudou na campanha eleitoral de Paulo Maluf, em 90, e foi pego no caixa dois.

Aos 66 anos, em espaços de tempos variados, nunca sincronizados, ele voltou a se apresentar ao lado do piano. Mas tocou seu limite máximo. Na fita, o esforço para voltar à ativa torna-se muito lancinante na cena em que toma injeções na mão esquerda para amenizar as infinitas dores. Porém, o documentário tem alegria. O encontro com o pianista americano Dave Brubeck, ídolo de Martins, é inesquecível, assim como conversa de ambos. Langemann soube aproveitar bem o tempo disponível. Com Brubeck, alcança os detalhes durante o papo destes dois gênios. Até o sublime instante em que, Martins, dominado pela timidez diante de seu ícone, toca poucos segundos mais uma canção de Bach e olha para Brubeck, esperando um elogio, como se fosse uma criança sedenta de pirulitos. “Eu não estou muito em forma”, diz o brasileiro, num inglês meio torto. “É uma maravilha”, devolve o norte-americano. E, então, o estrangeiro dá uma canja. “Paixão Segundo Martins” tem locações em vários pontos: São Paulo, Nova Iorque, Sófia (Bulgária, onde ele sofreu outro revés em sua vida) etc. Não são poucas as vezes em que J. Carlos Martins quis desistir de tudo. A superação foi transcendental.

Entre 1979 e 1998, o pianista gravou toda (eu escrevi ‘toda’) a obra de Johann S. Bach, numa série de cds. “Na sua apresentação, ele parece um possesso”, diz um crítico musical. É bom lembrar que na fita são mostrados diversos trechos de shows dele, inclusive o de 1958, citado anteriormente. Como ele explica na fita, sua trilha sonora é “Let me try again” (Deixe-me tentar de novo). Isso tem um motivo: agora que não pode mais tocar piano, virou maestro. Suas mãos e dedos continuam com as atividades, mas desta feita regendo orquestras. Preciso explicar o porquê de minha admiração por ele? Let me try again...

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 24/07/2009
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