Monsieur Verdoux (publicado originalmente em 17/5/2006)
Nas últimas três semanas, repassei modestamente neste espaço a carreira de Charles Chaplin e seus filmes mais conhecidos no mundo: “Tempos Modernos” (1936), “Luzes da Cidade” (1931), “O Grande Ditador” (1940) e “Luzes da Ribalta” (1952). Prometi encerrar minha série de homenagem na quarta-feira passada. Mas a vocês, meus raros leitores, peço desculpas. Hoje novamente será Chaplin o centro desta coluna. Os que conhecem a filmografia dele repararam no título deste texto. Confesso a vocês que “Monsieur Verdoux” (1947) era um longa-metragem que pouco eu conhecia, até mesmo ouvira falar. Porém, no fim de semana que passou, a citada película me caiu nas mãos. Ao invés de me preocupar com o caos que São Paulo se transformou, resolvi alegrar minha consciência vendo o tal “Monsieur Verdoux”. E, sinceramente, nunca havia visto Chaplin tão cômico, traquejado. Deixou de lado a pantomima, despiu-se delas. Nem em “Vida de Cachorro” (1918), para mim a obra muda mais espetacular do cinema, ele esteve dotado de tamanha personalidade hilária. Mas não pense que o filme é palhaçada ipsis litteris, escala dó-ré-mi. É biografia do medonho, categórico serial killer.
Chaplin interpreta Henry Verdoux. Ex-bancário, se vê sem amparo depois da crise econômica que atinge o planeta na década de 1930. Após três décadas atrás do caixa de uma agência, está sem emprego. Para sustentar a esposa inválida e o filho pequeno, decide cometer assassinatos caminhando sobre uma estrada bastante conhecida: galanteava-se para senhoras viúvas, casava-se com elas e em seguida as matava, carregando consigo todo o dinheiro as pobres mulheres. Poligamias à parte, tem sucesso um certo tempo, até ser descoberto pela família de uma das vítimas, que, ao aprofundar-se no assunto, consegue apanhá-lo. Em meio a essas aventuras, Verdoux, um francês recheado de gestos e fineza, se traveste de capitão da marinha, vendedor de móveis e um plácido enamorado que manda flores à sua amada. Neste enredo de humor negro, seus desacertos são o prato principal do longa, de duas horas de duração. A primeira metade do roteiro serve para explicar ao público a vida agitada do protagonista. Nos 50% derradeiros estão os pontos mais engraçados de toda a maquinaria. Ao tentar liquidar suas pseudo-esposas, Verdoux mete-se em todos tipos de algaravias, qüiproquós e mafuás.
O roteiro de “Monsieur Verdoux” é baseado em história criada por Orson Welles, cujo nome é rabiscado nos créditos. O mote é um verdadeiro caso ocorrido na Europa em fins dos anos 1910 e o começo da década de 1920. O criminoso “real” foi condenado à morte, tal qual o nosso Chaplin. Isso é dito ao espectador nos minutos iniciais do filme, quando, da lápide do cemitério, vemos a inscrição 1880-1937 – Henry Verdoux. No destaque do filme está a atriz norte-americana Martha Reye. Como Annabella Bonheur, esposa do capitão (falso), altera momentos de elegância e outros de sucessivos gritos e berros. A cena de Verdoux na canoa com Annabella é formidável, assim como também a ele tentando matá-la com veneno. No filme, pode-se notar ainda as consecutivas viagens do assassino, e, com elas, a trilha sonora criada por Chaplin, como acostumou-se a fazer em seus filmes. Outro fator é a multiplicidade de suas faces. Uma hora é o inescrupuloso carniceiro, que queima suas mariposas. Noutra, é o pai de família atencioso, preocupado com a educação do pimpolho e com as dificuldades da companheira que não anda. Na outra, é negociante deprimido por perder tudo na bolsa de valores.
Sem perder a estribeira em nenhum momento da fita, Henry Verdoux me cativou, assim como doutor Hannibal Lecter, de “O Silêncio dos Inocentes” (1991). Entretanto, Charles Chaplin é Charles Chaplin e Anthony Hopkins deve ficar em seu devido lugar. Com “Monsieur Verdoux”, Chaplin vai a seu topo. Tornou-se o mito de seu próprio mito.