Singela homenagem I (publicado originalmente em 26/4/2006)
Tenho escrito pouco sobre Charles Chaplin. Aliás, ele foi tema desta coluna uma única vez, no começo de 2004. Hoje será diferente. E explico porquê. Existem filmes e filmes. Há aqueles em que o espectador se lembra de uma determinada cena, ou seqüência. Outras fitas marcam por estar nela o determinado personagem, vilão ou mocinho. Tem ainda os que se recordam da história por meio do nome do diretor: “A história possui a característica do fulano, na direção”. Com Chaplin, poucos não são as tramas em que o público assiste e se lembra dele por inteiro. Com “Luzes da Ribalta” (1952) acontece esta reação. É, sem pensar muito, a maior auto-homenagem já feita no cinema. O roteiro do artista decadente, que se reergue graças a uma jovem e doce bailarina doente, é simplesmente ímpar. Chaplin, aos 63 anos, estava num momento ruim na carreira. E não era culpa dele. O cineasta estava envolvido em denúncias sobre comunismo. Pertencia à lista negra dos perseguidos políticos. Quando terminou “Luzes da Ribalta”, mudou-se de país. Saiu dos Estados Unidos para radicar na Suíça. Mas os fatos políticos não atrapalharam a fita magistral escrita, dirigida e protagonizada por C. Chaplin.
Nela, o eterno Carlitos interpreta Calvero, ex-comediante dos tempos áureos da Europa (o filme se passa entre 1914 e 1915). Desacreditado em tudo, Calvero passa dias a beber. Em um desses dias no qual retorna ao seu apartamento completamente embriagado, sente cheiro de gás de cozinha. Era Thereza Ambrose tentando cometer suicídio. O artista fracassado a resgata e a leva para seu quarto. Aí, conhece o problema da moça. Bailarina com sucesso ascendente, suas pernas a deixaram na pior. Estão imóveis. Estamos aqui com um interessante dueto: o homem que fazia rir, e agora não liga para mais nada, quer salvar a garota; para isso, terá de reanimá-la. Que sacada! O tempo passa e Thereza recupera, aos poucos, seus movimentos. Enquanto isso, Calvero consegue alguns bicos no teatro, mas sem o aplauso de antes. Durante as noites, relembra seus anos dourados, de vacas gordas, nos sonhos. Lá, o público o idolatra e pede bis a toda piada e número musical. Porém, são recordações. E nada mais. Ao voltar aos seus bons dias, Thereza pede Calvero em casamento. Não é uma atitude de amor, mas de gratidão. A considerável diferença de idade e a desesperança impedem o ex-artista a aceitar.
É demais a grande magia em torno desta película. A começar pela trilha sonora, composta por Charles Chaplin também. Ela é executada durante belos passos de dança da menina Terry (apelido) Ambrose. Quem a escutou, jamais esquece. Outro detalhe esplêndido é a “confissão” de Chaplin para seu público. Aquela altura, ele se despedia da carreira, que começara décadas atrás no cinema mudo e que atingia o ápice nos anos 1930, com “O Grande Ditador” (1940) e “Tempos Modernos” (1936). Após “Luzes da Ribalta”, ele faria somente mais dois trabalhos na telona: “O Rei de Nova Iorque” (1957) e “A Condessa de Hong Kong” (1967). Mas o drama de 1952 foi carimbado como a última e verdadeira atuação deste multi-artista. Enche os olhos de lágrimas a seqüência onde Calvero, na rua, se exibe em troca de algumas moedas. Com a cartola, entra em um bar e pede qualquer contribuição. Como Chaplin sabia tocar no ponto exato do espectador. E no instante preciso. Aquela pessoa que dava confiança e incentivava a bailarina Thereza era a mesma que sabia que sua época havia passado. O cineasta fez isso com maestria, transbordando em elegância. Foi a chamada “passagem de bastão”.
Aos 63 anos, Chaplin era realmente o palhaço sem a maquiagem naquele filme. Cabelos quase todos encanecidos, olhar murcho... O Carlitos de antigamente estava lá, dentro dele, sem dúvida. Ele, entretanto, não deixava isso transparecer. Queria que as pessoas o vissem sem o mini-bigode, sem os sapatos grandes, sem a bengala de bambu, sem a cartola preta, sem aquela agilidade característica. O público por pouco não se convenceu de que Charles Chaplin, o mito maior dos primeiros 50 anos da sétima arte, estava no fim. O ator se salvou, de propósito, na cena derradeira de “Luzes da Ribalta”. Calvero recebe proposta tentadora para uma apresentação definitiva. E é ovacionado. Dá tudo de si (o parceiro dele na seqüência é ninguém menos que Buster Keaton, outro rei do cinema mudo, notem). Esperteza estava de volta. O número com a perna direita bamba é extraordinário. Depois, Terry baila no palco, enquanto Calvero assiste. Não contarei o final, mas é a emoção a flor da pele. Por isso, está aqui o pedido de desculpas. Penitencio-me por ter escrito tão pouco acerca deste gênio incomparável. Assim, a coluna da semana que vem será ainda de Charles Chaplin. Estou de joelhos do lado de cá.