Harvey Pekar (publicado originalmente em 5/4/2006)
Encontramos vários Harvey Pekar durante nossa vida. Eu posso ser um Harvey Pekar. Você, é claro, também pode. Harvey Pekar é um sujeito muito comum. Trabalha como arquivista no hospital de sua cidadezinha. Seu cotidiano burocrático o aborrece demais. Não leva sorte com seus afazeres. Para complicar sua situação, a voz fica prejudicada de tanto gritar por exatamente abdicar de todos os gostos dele. Sua segunda esposa, depois de concluir a pós-graduação, o abandona. Mora num cafofo sujo, bagunçado e cheio de discos de jazz e livros. Tudo se entulha no meio do pó. Harvey Pekar é qualquer um de nós. E, nestes acasos do destino, vira personagem de um famoso gibi: o “anti-herói americano”. A história, verídica, é contada no filme “O anti-herói americano” (2003), com o ator Paul Giamatti no papel principal. Na década de 1970, o protagonista se vê em meio de uma biografia destroçada por sucessão de confusões e frustrações. Até que conhece o desenhista Robert Crumb. Na verdade, Crumb torna-se relativamente conhecido por seus traços interessantes. Vendo nisso um bom filão, Pekar tem a idéia: escrever história sobre sua própria vida para ser colocada nos quadrinhos.
A revista torna-se famosa. Em conseqüência, Pekar também. E ele não está nem aí. Ou finge não estar. Ele é mau-humorado de fino trato. Rabugento e arisco. Para contrabalançar isso, entra na vida dele Joyce Braber (interpretada por Hope Davis). Joyce é fã do gibi “O anti-herói americano” e, por uma infelicidade (ou felicidade) um dos números falta na sua coleção. Ela, então, manda carta ao próprio Pekar. As conversas evoluem, eles se conhecem pessoalmente e poucos dias depois se casam. Com seus óculos enormemente redondos, Joyce faz o estilo papo-cabeça. Como ela mesmo diz, está acostumada a lidar com pessoas complicadas. O anti-herói seria mais uma, mas agora seu marido. O arquivista, centro das atenções, torna-se mais prisioneiro de sua trajetória. “A rotina é complexa”, diz o coitado. Há algo em seu redor que o incomoda. Seria o reflexo do espelho? Pode ser. Perto dos 40 anos, não tem noção do que fazer. Mal sabe para que nasceu. De certa forma, todos temos esses tipos de dúvidas e questionamentos. Com Pekar isso se multiplica por 15. Ele desenvolve um câncer, mas se recupera. Afinal, sabemos o fim. Será mesmo? Outra pessoa baterá à porta de Harvey Pekar.
A trilha sonora de Mark Suozzo é imprescindível desde as primeiras cenas. Sem ela, o filme é morto. O roteiro de Robert Pulcini e Shari Springer Berman, que também dirigem a fita, possui alta estrutura. As passagens mostradas como histórias em quadrinhos é criativa por exibir qualidade bem modelada. No elenco, destacam-se tanto Giamatti como Hope. O ator foi bem escolhido para o papel. O rosto e expressões são semelhantes aos do Pekar real. Além disso, os 36 anos à época traduzem-se tal como os de Pekar: ambos pareciam ter mais de 45. Com Hope, é o oposto. Estava com 39 anos quando filmou “O anti-herói americano” e sua face angular demonstrava 20 e poucos. Deixou os seus cabelos pretos, longos e lisos. Seu nariz reto, arrebitado, comportou-se bem ao segurar os óculos. E há figuras coadjuvantes que são proibidas de serem esquecidas, casos de Crumb (James Urbaniak) e do autista e nerd Toby Radloff, colega de trabalho e amigo de Pekar (o ótimo Judah Friedlancer). Os 100 minutos de duração são preenchidos como se virássemos mesmo as páginas dos gibis. Estão lá imagens das entrevistas de H. Pekar com David Letterman (Pekar ganhava cachês para ir a atração).
“O anti-herói americano” teve recepção morna no mundo todo, inclusive no Brasil. Giamatti merecia ter sido indicado ao Oscar de melhor ator e Hope, a de atriz coadjuvante, assim como o par de diretores. Mas a película apenas foi catalogada na categoria roteiro adaptado (perdeu para a parte três de “O Senhor dos Anéis”). Giamatti, que seria indicado este ano por “A Luta pela Esperança” (2005), cujo papel de empresário de um famoso lutador de boxe foi menos excitante que este Pekar aqui. Havia feito também “Sideways – Entre umas e Outras” (2004), com interpretação relevante não reverenciada. Hope, para quem não se recorda, fez a filha de Jack Nicholson em “As Confissões de Schmidt” (2002). Sem ser daqueles dramas de blockbuster, “O anti-herói americano” é uma opção à parte no cinema. É daqueles filmes diferentes em tudo: conteúdo, forma, interpretação. Ganhou um prêmio no Festival de Cannes de 2003. Com Harvey Pekar, sempre. Vida comum, em um filme sem nada de normal.