Distinto sujeito (publicado originalmente em 29/3/2006)

O doutor Hannibal Lecter é um senhor elegante. Não no modo de trajar. Mas respira acima dos demais. É um conquistador. Psicólogo, discorre sobre a morbidez. De traços nórdicos, estampa nos olhos azuis claros a sinceridade de quem conhece qualquer assunto acerca das vidas alheias. Lecter, para quem está avariado da memória, é o personagem central de “O Silêncio dos Inocentes” (1991), fita que abocanhou a estatueta principal do Oscar de 15 anos atrás. Trancafiado por praticar atos de canibalismo, ele está prestes a ajudar a jovem aspirante a agente do FBI Clarice Starling a desvendar parte a parte a identidade de um esperto assassino em série, cuja marca registrada é retirar a pele das vítimas. Mas arrancar informações do psicólogo não é tarefa fácil. A estudante tem de se virar como pode e torcer por acordos com seu depoente. Em contrapartida, Lecter aceitará ser condescendente no caso se Clarice confessar suas angústias do passado. Na verdade, ele deseja que ela seja sua paciente, e, assim, desabotoar o lado mais macabro: de condutor de tragédias. A futura policial concorda logo.

Analisar os atores Anthony Hopkins e Jodie Foster é, como se diz, “chover no molhado”. Ao encarnar o sádico médico, Hopkins colocou para fora todo seu rancor. Talentoso, dilapidou demais a estirpe de Lecter. As falas pausadas, olhar fixo, cabelos sempre muito bem ajeitados, enfim, tudo de correto, a não ser o fato de ter predileções por pratos exóticos. Com Foster, a situação é paralela. Na época das filmagens, à beira dos 30 anos, a atriz tinha acumulado diversas experiências. Começara a trabalhar com seis anos. Aos 14 escandalizou ao encarnar uma prostituta em “Táxi Driver” (1976). Em “O Silêncio dos Inocentes”, estava em seu auge. Seu 1.61 metro constava além-câmera. O que se percebia mais era seu par de olhos azuis, como os de Hopkins, mas mais destacados por seus cabelos escuros. A atuação dela surpreendeu por se tratar de uma profissional mais abrilhantada em razão de sua beleza a sua entrega em cena. Conseguiu aliar estas características. Não à toa ambos ganharam Oscars de melhores ator e atriz pelo filme algo bastante raro na festa mais importante da sétima arte.

Voltemos para a consulta de Clarice com Lecter. Às buscas são em torno de Buffalo Bill, o tal que arranca o couro dos outros. O bandido seqüestra a filha de uma senadora dos Estados Unidos. A cada hora que passa, o prazo para a vida da garota diminui. Lecter começa a soltar seus diagnósticos. Os encontros da dupla são pontos altos da fita. Todas cenas, competentemente dirigidas por Jonathan Demme (também vencedor do Oscar) têm luzes bem marcadas, câmeras em close e o sombrio tom de maldade conseguido por Anthony Hopkins. A proteção de vidro de sua cela parece frágil demais para qualquer artimanha mirabolante do doutor. A agilidade dele é mostrada em uma única seqüência, na qual viaja para se encontrar com a senadora apavorada. Mesmo com camisa-de-força e focinheira, ele se adequava bem aos percalços da prisão. Em meio à escuridão e ao silencioso ruído de crime no ar, descobrem-se pistas preciosas. Apesar de a trama ter um final sugestivo (o da continuação), o longa metragem conclui-se arredondado. O roteiro foi outro prêmio da Academia de Artes conquistado.

Porém, suas duas continuações deixaram imensamente a desejar. “Hannibal” (1999) tenta até o espelho do antecessor. Mas é atropelado por sucessivas confusões. Jodie Foster preferiu se ausentar destas filmagens por não concordar com a história. Julianne Moore entrou no lugar dela. Além disso, há cenas de estilo “trash” que poderiam muito bem ser descartadas. Aqui, Lecter, solto, trabalha em uma biblioteca na Europa. Enquanto isso, uma das vítimas que sobreviveram aos seus ataques quer vingar-se dele. Para tanto, conta com a participação da agente policial. E pára por aí. Não adianta ver. Em relação a “Dragão Vermelho” (2002), pouco posso escrever. A película é de tão baixa qualidade que nem vale a pena. A história é remotamente semelhante a “O Silêncio dos Inocentes”. Só. Queria era saber porque Hopkins disse sim a esta proposta. Nesta terceira saga, Hannibal Lecter já não é o mesmo. Tanto “Hannibal” como “Dragão Vermelho”, portanto, não apagam a luz do filme de 1991. É assustador e provocante. Um distinto sujeito é esse Hannibal Lecter... Cordato até não pode mais.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 21/07/2009
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