Velho, saravá! (publicado orignalmente em de 22/2/2006)
Vinícius está deitado no sofá da sala. Cabelos brancos que fogem do lugar, camisa largada vermelha, óculos desgastados de lentes escuras. Está sonolento. Uma mulher acaricia seus fios da cabeça suavemente. Não se sabe quem é, pois só aparece um braço, uma mão. Olhos fechados, ele balbucia, baixinho: “Menininha boazinha”. Depois, se vira e deita-se de costas para a câmera. E que importa? Ele nem sabe que está sendo filmado. Está bêbado, é a impressão que se tem. Não duvide, porque não raro seu estado era esse mesmo. Esta seqüência de “Vinícius” (2005) me fez pensar em minha velhice. Queria estar como o poetinha Vinícius de Moraes estava naquele segundo. Deitado, quase adormecido, tranqüilo. Tinha vivido. Chorei então, sentado na poltrona do cinema. Senti dó e pena dele. Depois percebi que estava errado. Vinícius de Moraes não foi uma pessoa frágil. Tinha as suas tristezas, porém sabia lidar com elas. Em certo momento do documentário, alguém afirma que o compositor não foi uma pessoa feliz. Pode ser. Mas soube driblar seus obstáculos como poucos. Sem se abater, transformou diplomacia em boemia, bacharelado em “Garota de Ipanema”, casamento em uísque. A fita, dirigida por Miguel Faria Júnior, é sentimental, compreensiva e tocante. Um presente.
Os depoimentos são das pessoas que freqüentavam a casa dele, para cantar suas alucinações, ou simplesmente gostavam de tê-lo ao lado, como amigo de todas as horas. Chico Buarque, Toquinho, Tônia Carrero, Antônio Cândido, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo, Ferreira Goulart... Nas histórias deles, Vinícius era aquele que caminhava bem torto pelas linhas certas. Tônia se encarrega de suas aventuras e desventuras amorosas, mas a confissão vem de Toquinho: casou-se nove vezes! “Quando ele deixava de se apaixonar, abandonava a mulher”, diz a atriz. “Mas era capaz de qualquer baixaria para conquistar uma outra”, completa. Na profissão que escolheu, a interpretação pode ser a mesma. Um diplomata que viajou o mundo foi parar na Bahia e compôs canções infinitas enquanto elas durassem. E que bom para nós que elas estão por aí até hoje. O respeito pela obra vai a ponto de as filhas só o chamam, durante o longa, de Vinícius. O ‘pai’ fica de lado nessas horas. Músicas, peças de teatro, poemas. O que mais um ser humano pode querer numa biografia? Saber que a cada minuto cumpre seu dever. E Vinícius de Moraes estava consciente disso. Assim, os amigos o rodeavam. A amizade compulsiva também foi abordada de forma compulsiva. Goste-se ou não, ele se preocupava.
Edu Lobo, então, dispara: “Um dia, ele estava triste. Eu me aproximei dele, mas não falei nada. Ele me disse ‘tá com pena do seu parceirinho, né?’”. E Edu Lobo, do alto de sua altivez, não pode mais terminar de falar. A emoção o toma. Volto a chorar e ter pena de Vinícius. Logo isso se vai. A imagem dele totalmente embriagado no ombro de Tom Jobim, cambaleando nas palavras, é de uma simpatia tremenda, assim como outras histórias (ao ver o filme, não vá embora nos créditos finais, tem coisa boa por vir) engraçadíssimas. Quem mais empolga é Chico Buarque (acreditem, a timidez dele sumiu nesta produção) e Tônia Carrero. Citam sua intuição camaleônica ao mudar de estilos de música: Bossa Nova, MPB, afro. Estava em todas. Em todas mesmo, até nas paradas de sucesso do mundo, apenas atrás dos Beatles. E isso por duas décadas ininterruptas. Mas porque não consolidar a primeira colocação? “Ah, os Beatles são quatro... Não dá para concorrer com eles”, diz Vinícius de Moraes em passagem contada por Carlos Lyra. Também não dava para concorrer com os militares da ditadura nacional. Que regime queria ter como diplomata uma pessoa que adorava uns goles a mais e representava o país daquela maneira? Destituíram-no de seu cargo. O compositor se importou tanto...
Há também em “Vinícius” vários números musicais. Um melhor que o outro. Zeca Pagodinho, Adriana Calcanhotto, Mônica Salmaso etc... Imagens de arquivo não faltam. Pixinguinha, ídolo do poetinha, está a seu lado. Baden Powell, com ele, em uma sala, entoa junto com outras pessoas, o “Canto de Ossanha”. Dá vontade de acompanhá-los naquele ritmo imposto por Vinícius, a cada “vai, vai” cantado por ele. Mas não deu... Quando se interrompe tudo, aos 66 anos, em julho de 1980, ele está dentro de uma banheira. Morto. Isto não é exposto no filme. Ainda bem. Seria mais um motivo para eu sentir dó dele. E eu não queria isso. Afinal, como escreveu Toquinho, “a vida é pra valer, a vida é pra levar...”. Saravá, velhoVinícius! Caro Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes.