Estudo de caso (publicado originalmente em 15/2/2006)

Outro filme de Alfred Hitchcock: “Os 39 Degraus” (1935). Não sei porquê achava ser de 1939 esta produção. O diretor inglês inovou para e época, mas repetiria a fórmula em várias fitas de anos seguintes: intrigas envolvendo gangues de espiões, sempre com a mira voltada para um homem com jeito de vilão ser indicado como principal suspeito. Então com 46 anos, o mestre do suspense montou a história da moça que está para revelar um importante segredo de Estado a um desconhecido, mas é assassinada antes de balbuciar qualquer sílaba. O roteiro impressiona pela agilidade dos personagens e sincronia com a trama. Começa numa espécie de convenção empresarial, onde um mágico-adivinha tenta decifrar as mais tresloucadas perguntas do público. Richard Hannay está entre os espectadores e observa cuidadosamente as respostas do homem dos truques. Pamela também assiste ao espetáculo. Na saída, ambos se encontram “por acaso”. É o momento em que a jovem pára o herói hitchcockiano a fim de lhe contar aquele terrível segredo. Quer, antes, se esconder na casa dele, pois é perseguida (não se sabe por quem). Hannay, de férias em Londres e bastante assustado com a situação, a leva até seu apartamento. Inicia-se dessa forma o mistério em torno de Pamela: quem é ela e de onde vem?

Os detalhes são revelados aos poucos, como pingos d’água na torneira mal fechada. Hitchcock lida com a paciência do público nesses instantes. Quando o espectador sente que o filme finalmente sairá do lugar, a protagonista é morta. Há, de imediato, para os cinéfilos plantonistas, a ligação com Marion Crane, de “Psicose” (1960). Interpretada por Janet Leigh, a famosa cena do chuveiro citada aqui diversas vezes, é eterna. Ocorre antes da metade do longa-metragem, como nos “39 Degraus”, rodado 25 anos antes. Com Pamela fora da jogada, a fita tende a piorar, pode pensar o público. Mas não é o que acontece. Hannay, depois da morte, parte em busca da solução para sua encruzilhada. Ele embarca como clandestino em um trem – atenção, cinéfilos: aqui “Intriga Internacional” (1959) vem à baila, com muitas referências. O mocinho perambula por toda a cidade, atravessa Estados, praças, ruas, e deveras atinge seu objetivo. Não por completo, diga-se de passagem. Mais uma lembrança: “O Homem que Sabia Demais” (1937), em seus momentos finais. Hitchcock se mostrou que era, sim, inspirador de si próprio. Usou “Os 39 Degraus” como, digamos assim, cobaia para seus projetos das décadas seguintes. Repara-se que o filme de 1935 foi, na verdade, sério estudo de caso do cineasta.

Não apenas isso. Na linha sob a qual a história se desenrola, entremeada por vários nós, alguns laços difíceis de desamarrar e fios unidos, está a característica principal da carreira inteira de Alfred Hitchcock: inocente acusado por algo que ele sequer tem a mínima noção do que seja. O longa, que no ano passado completou bodas de vinho, inaugurou o chamado “suspense tipicamente americano”. O diretor soube trabalhar bem essa bossa. Dono de si, ele “manipulou” bem o casal de atores Robert Donat e Madeleine Carrol. Com Donat, essa sensação de perseguição parece ter ultrapassado a linha reta. “Os 39 Degraus” foi seu sexto trabalho em somente três anos de carreira. Havia passado antes pelo “Conde de Monte Cristo” (1934, no papel-título). Filmaria mais 14 fitas até 1958, recusando mais trabalho que aceitando. Vitima de asma crônica, foi aos sets de seu derradeiro compromisso no cinema com máscara de oxigênio. Morreu aos 53 anos. Carrol prolongou mais sua vida. Precedeu Grace Kelly nas preferidas de Hitchcock. Ela nos anos 1920 e 1930; Kelly entre meados das décadas de 1940 e 1950. A carreira da intérprete de Pamela foi rápida: durou de 1928 a 1955 (ela morreria em 1987, aos 81 anos, de câncer no pâncreas, na Espanha). Nos quase 30 anos, dedicou-se a 48 filmes.

Assisti recentemente “Os 39 Degraus”. Fiquei surpreso ao notar a clareza tão transparente de Alfred Hitchcock, que naquele tempo contava pouco mais de dez anos de estrada. Ele já sabia como poucos o que faria dali para frente. Traçou seus planos a partir da película sobre o grupo criminoso. De volta ao palco dos mágicos, é lá onde se dá o desfecho da fita. “Nada nesta mão, nada nesta outra, e alacazam!”: o mestre do suspense desvenda mais uma vez seu triunfo. Debaixo das mangas, estão, de novo, os meus aplausos.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 19/07/2009
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