Confronto sublime (publicado originalmente em 8/2/2006)

Há um claríssimo duelo de nacionalidades em “Casa de Areia e Névoa” (2003). A bela e jovial Kathy (Jennifer Connely), norte-americana, boa aparência, está atônita. O Estado, por engano, pôs a casa dela em leilão por falta de pagamento dos impostos. Moradia bonita, larga, segura. Insegura era a moça. Abandonada pelo marido alguns meses antes, mente à família dizendo estar tudo bem. Kathy entra em transe quando vê que pode perder seu canto. O iraniano Massoud Amir Behrani (o ‘Gandhi’ Bem Kingsley), do outro lado da moeda, não perde a oportunidade de dar um conforto maior para a esposa Nadi (Shohreh Aghdasloo) e o filho adolescente Esmail (Jonathan Ahdout). Assim sendo, ele aproveita o baixo preço da casa em leilão e a compra, para meses depois revendê-la por uma bagatela quatro vezes mais cara. Ocidente contra oriente. O “bem” contra o “mal”. Estados Unidos versus Irã. O duelo do casal Kathy e Behrani é dotado de impasses, jogadas de baixo nível e estupidez. Para o iraniano, acostumado com a subserviência das mulheres, é inadmissível aceitar apenas dialogar com a agora sem-teto e separada Kathy. Esta, por sua vez, apóia-se na advogada que contrata para tentar reaver a casa e em Lester (Ron Eldard), o policial que a colocou porta afora e pelo qual se apaixona.

Mas a película dirigida pelo então desconhecido ucraniano Vadim Perelman (em seu primeiro trabalho no cinema, que também produziu e escreveu) quer mostrar o quão cruel é o personagem de Kingsley. O Irã é o avesso da política de boa vizinhança. O ator, com sua cabeça raspada, nariz um tanto avantajado e olhar impiedoso, está ótimo no papel. Encarnou o chefe de família que deseja a qualquer custo dar o padrão de vida igual ao de sua terra natal à mulher e o herdeiro. É irredutível aos incessantes pedidos de Kathy. A mãe dela está vindo visitá-la e ela não quer recebê-la em outro local senão aquele enorme bangalô. Connely, linda como sempre, deixou em “Casa de Areia e Névoa” seu estilo ‘boazinha’, adquirido, por exemplo, em “Uma Mente Brilhante” (2001) e “Hulk” (2003, sendo esta fita o fracasso que foi). A cada má notícia dada pela advogada, sua depressão aumenta. Perelman conduz esse momento de forma categórica. A atriz, naturalmente menos experiente que Kingsley, é quem chama mais a responsabilidade para si, claro, colada nas instruções do diretor. Quase no fim da trama, estamos com muita pena de Kathy e querendo ver Behrani e sua família deportados a qualquer buraco. Não é o que ocorre. O longa-metragem tem desfecho totalmente inesperado e intrigante.

Em meio de Kingsley e Connely, é Shohreh Aghdasloo quem surpreende. Nascida em Tehran, no Irã, a intérprete de Nadi vai além do convencimento fajuto. Sua personagem mal sabe falar inglês – e Kathy reclama disso com sua advogada (demonstração da tendenciosa xenofobia pós-atentado de 11 de setembro de 2001). É Nadi quem porá alguma água na fogueira entre Kathy e Behrani. Ela faz isso mais por dó da garota do que por adoração ao marido. Nas cenas mais chocantes, Kathy pisa em tábua de madeira cheia de pregos – é Nadi quem a assiste. Depois, tocada pelo também abandono de Lester, a personagem de Connely tenta o suicídio. É a esposa dedicada quem a atenderá, levando-a para dentro de sua residência. Residência de Kathy, diga-se de passagem. Como os trovões seguem o rumo da tragédia, Nadi fica sem saber o que fazer. Em outra seqüência mágica, ela olha do terraço o pôr-do-sol, o pouco que dá para enxergar, já que a casa é coberta por névoa (a areia é a da praia, logo ali ao lado). Imagem espetacular, recheada por amargura e mágoas. Nadi quer ir embora dali por não suportar mais ver Kathy se deteriorar. A menina precisa da casa. O imóvel se transformara na única motivação de vida da jovem. Se perdê-la, o destino será traçado por mãos sem qualquer coordenação.

Não à toa, “Casa de Areia e Névoa” recebeu da Academia de Cinema três indicações ao Oscar: ator (Kingsley), atriz coadjuvante (Aghdasloo) e trilha sonora. Pode não ser muito, mas é o suficiente para um roteiro que passou em branco em vários países, inclusive o Brasil. Mesmo não ganhando as mini-estátuas, a fita se consolidou depois da principal festa da sétima arte. O confronto entre Kathy e Behrani foi além das paisagens brancas do filme. Irã e Estados Unidos são postos face a face numa história impressionante e sublime, onde, evidentemente, a aura da América do Norte jamais pode ser estragada. Porém, ambos perdem.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 19/07/2009
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