Nada de praia (publicado originalmente em 1º/2/2006)

O artigo de hoje é dedicado a Roberto DaMatta, colunista do jornal “O Estado de São Paulo”. Quarta-feira passada, em seu espaço no Caderno 2, ele gastou suas impressões digitais defendendo o ‘ir à praia’, apesar das mudanças que, tragicamente, os locais de banho de sol tiveram. Referiu-se aos arrastões, população porca que joga lixo nos trechos de areia (areia suja, diga-se de passagem). Ao puxar pela memória, recordou seus tempos de criança, adolescência e velhice (carregar netos nos ombros, por exemplo). A praia, para DaMatta, é um lugar sagrado. Para mim, é salgado. Desde que me entendo como gente, nunca tive qualquer apreço por praias. Nenhuma praia. Quando era menor, com uns cinco, seis anos, tocar a areia era como subir em direção ao cadafalso. Adorava montar os castelos de areia, cavar buracos etc. Era um garoto normal. Mas o pior era o momento de ir embora. Não porque queria ficar mais tempo. Sim porque a areia não saía do meu corpo. Eu me transformava no desespero traduzido em forma humana. Entrar no carro com aquele calor de rachar catedrais não cumpria o que eu tinha estabelecido para mim. Minha idéia era ir a alguma casamata, bem fechada, com ventiladores (o ar condicionado ainda não estava na moda) espalhados por todos os ângulos.

Solfejava reclamações, detalhava desgraças, enfim, queria chegar logo em casa para finalmente voltar a viver. E tinha de ser o primeiro a entrar para tomar banho. “O” banho. E, lembrando de novo, tinha de cinco a seis anos. Sete para oito também. Está bem, confesso: perdurou até os dez, 12, 13. Hoje não mais porque felizmente consigo evitar ir à praia. Infelizmente, porém, pois de certo não cruzarei com Roberto DaMatta em algum recanto familiar cercado de água apimentada por todos os lados. Mas vamos voltar ao banho. Saía dele, e logo meu destino era o espelho. Como Deus não me deu a pele das personagens de Jorge Amado, via instantaneamente que havia tostado o rosto. Outra transformação: o desesperado humano agora era o pimentão de braços e pernas. E nariz. O palhaço chegou! Nunca vi uma pessoa ficar mais vermelha. Maças do rosto, orelhas, mãos, pés, ombros, pernas... Hemorragia transfigurada. Abaixo dos olhos, parecia que tinha levado uns sopapos. Aí o circo já poderia ser aberto, com ingressos vendidos. Tinha as minhas regras rígidas: não deixava ninguém tocar em mim. Quem já passou por isso sabe o motivo dessa atitude cruel, afastada e nada amistosa. Adiantava. Passavam-se alguns dias e tudo voltava ao normal. O branco estilo sulfite.

Dos dez anos, logo o calendário andou. 14, 15 anos... Como era ‘obrigado’ a ir para a praia, um protetor solar caía bem. Usava o número máximo. E, já perto do fim da adolescência, a areia me incomodava. O sol era (e é) meu inimigo mortal. A experiência sempre se repetia: carro na sucursal do inferno tão quente, banho longo, vermelhidão insistente... O caminho era esse. Aos poucos, fui me afastando das praias. Além de me prejudicar, eu também enjoei de ir. Nem andar nela eu gosto mais. Pores-do-sol, idem. Para mim, aquilo jamais teve alguma graça. Pode ter sido uma boa distração na época de criança, quando, tal como o jornalista do “Estadão”, ia nu à praia, com meses de vida. Nesse caso, a gente não sabe o que faz. Mas, também como DaMatta, já retornei com meus pais, irmão, primos etc. O sol à espreita. Parece me acompanhar e sentir a raiva que sinto dele. São as gotas de suor as representações da minha indignação. Os ultravioletas me maltratam demais. Pode ser o rei para muitos. Eu o acho um súdito. Considero as gotas da chuva as rainhas. O vento gelado das montanhas, o inverno de alívio, a manhã difícil de se acordar... Essa seara de sensações está no meu trono. No nosso país tropical, é a minoria. Não me importo. Praia não é a minha praia. Nunca será.

Comemoro aqueles 20, 30 dias de frio que o Brasil tem. Como sei que os 330 dias restantes são dominados pelo calor de deserto, me escondo dele. Tento me esquivar como posso. Não entendo essa paixão absoluta das pessoas pelo verão. Nós suamos, transpiramos, fervemos, nos cansamos, ficamos com uma baita preguiça. Aparelhos de ar condicionado indispensáveis. Os ventiladores não podem se cansar de funcionar. Já no inverno nada disso ocorre. O ar ‘noir’ das manhãs, todas elas esfumaçadas pelas neblinas. Os casacos saem dos armários. Homens e mulheres com seus olhares mansos de frio. DaMatta estava (ou está) errado. E hoje está chovendo...

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 19/07/2009
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