Ao lado de Patricia (publicado originalmente em 18/1/2006)
Existem filmes cuja inspiração derrota qualquer tipo de contrapartida ou comentário posterior. “Acossado” (1960), de Jean-Luc Godard, é destes raros exemplos. Primeiro, por ser daquele tipo de fitas difíceis de se compreender quando se assiste sem preparo. Segundo, porque ao entendê-la, nós percebemos como se faz genuinamente um filme. Godard, o diretor, arriscou em sua trama ao pegar a câmera e correr atrás de imagens. “Acossado” é assim: um punhado de imagens, com cortes bruscos e a todo instante. Mas há algo além da película. Por detrás dela, nota-se a história de Michel Poiccard e Patricia Franchini. Poiccard (Jean-Paul Belmondo) é um ladrão que foge de Marselha para Paris. Matou um policial e está em encrenca. Mas surge Patricia na vida dele. Oito anos antes de “O Bebê de Rosemary” (1968), quando Mia Farrow encantou multidões com seu corte de cabelo diferente, no estilo curtíssimo, Jean Seberg, a atriz que interpretou a jovem Patricia, exibia seus fios abreviados e loiros. Era Patricia. Ah, Patricia! Nariz arrebitado, cara escultural, olhos totalmente desprezíveis para quem desprezasse. Esse não era o caso do delinqüente amador Poiccard. O sujeito perseguia a pobre moça. Demais. Buscava refúgio. Tornaram-se amantes. Ela o escondeu em seu apartamento. Bingo!
Pretextos para conversar eram imaginados. É aí que o filme ganha força. Na realidade, a fita é apenas isso: os dois trancados naquele apartamento minúsculo batendo papos sobre tudo. De filosofia a morte, de ciúmes a gravidez. Patricia quer um filho de Poiccard. Liso, ele diz querer morrer. Ela, a americana. Ele, o francês. Neste duelo de idiomas, a garota perde. “O que quer dizer isso? O que quer dizer aquilo?”. Há certa palavras que não soa bem nos ouvidos de Patricia. O trapaceiro quer ser entendido na cama. A dócil menina, não. Quando ela põe um chapéu elegante, fica linda. O quadro que Edgar Degas, também francês, não pintou. E Patricia nem era bailarina. Ela solta mais um sorriso maroto. Quer, não quer... E Degas, se estivesse vivo, teria perdido mais uma oportunidade. Poiccard quer mudar o rumo de tudo. Precisa receber um dinheiro que lhe devem. Antonio, mais precisamente. Com as notas no bolso, a dupla de namorados escaparia para Roma. Era a promessa de Michel, olho no olho com Patricia. São closes atônitos de Godard. Expressões marcadas com a câmera no braço. Dessa revolução, derrubaram-se como as fileiras de dominós as regras rígidas da sétima arte. Todos os movimentos fazem sentido. A respiração é transparente. O espectador é íntimo do personagem.
A idéia para a história surgiu de uma notícia publicada em um jornal. François Truffaut, um dos nomes bíblicos do cinema francês, leu sobre um ladrão ajudado pela namorada e depois delatado por ela. Escreveu o filme com Godard. O movimento Nouvelle Vague, criado por críticos de cinema que mais tarde se revelaram excelentes cineastas (caso da dupla citada acima), estava no seu apogeu. Godard e Truffaut eram as estrelas da trilha. Faziam suas carreiras renderem. “Acossado”, passado quase meio século de produção, é das principais referências do cinema europeu. Tudo pelos belos caprichos de Poiccard e as estranhas inspirações delicadas de Patricia.
Eu queria ser Poiccard. Não pelos gestos fora da lei. Tampouco pelo ar de cafajeste indigesto que tinha. O motivo, óbvio, tem nome: Patricia. A doçura e encanto conquistam qualquer ser humano de bom coração. As conversas jogadas na sorte, como as cartas do baralho são arremessadas na mesa, e os sentimentos atropelados, dominados pela confusão de dois jovens indecisos sobre tudo. O futuro que lhes roubam das mãos. Terminei de ver a trama cheio de desesperanças. Nada certo, nada em seu lugar correto. Tudo bagunçado e desarrumado. Os calos eram deveras machucados.
E Patricia, ou melhor, Jean Seberg, era a maior prova daquilo. Tinha 21 anos quando trabalhou em “Acossado”. Era seu quinto filme na sua tão curta carreira. A atriz, que faria ainda mais 32 longas-metragens, morreu em 1979, aos 40 anos, vítima de overdose de drogas. Bela e fraca. A fita de Godard foi a única em que sobressaiu. Beleza disfarçada de ingenuidade. Na verdade, Patricia e Jean se fundem na mesma pessoa. Ambas possuem pensamentos adversos e inconstantes. A atriz tinha ligações com os Panteras Negras – movimento negro norte-americano da década de 1960 cujo símbolo maior se pôde ver nos Jogos Olímpicos de 1968, no México, quando as luvas pretas nos atletas representava a rebeldia.