Qualquer deslize (publicado originalmente em 11/1/2006)

“Os Eternos Desconhecidos” (1958) antecedeu “O Incrível Exército de Brancaleone” (1966). Mas poderia dizer que as duas fitas são irmãs siamesas. E antológicas. Como já dediquei uma coluna ao filme de 40 anos atrás, gastarei as linhas na trama quase cinqüentenária. Ambas foram dirigidas pelo italiano Mario Monicelli. Fiquei fã dele por seu estilo. Seleciono-o no panteão de comandantes, ao lado de mestres de porte de Alfred Hitchcock e os compatriotas Federico Fellini e Vittorio DeSica. A história de “Os Eternos Desconhecidos” é simples. Um grupo de amigos desocupados na Itália do pós-guerra arma um golpe com ares cinematográficos. Querem assaltar o cofre da nobre joalheria da cidade. Para tanto, têm que passar por várias etapas, entre as quais está caminhar sobre uma janela de vidro, arrombar paredes de papelão de uma casa desabitada e solucionar os números cabalísticos do tal cofre. Liderados pelo boxeador medroso Peppe e por Mario, mimado pela mãe; a gangue conta também com Tibério, um pai solteiro (a esposa está na penitenciária) e Michele Ferribote, alerta para proteger a irmã, e Capanelle: ultrapassou 60 anos, é o mais atrapalhado e vive a procura de comida.

Monicelli reuniu um elenco primoroso para montar “Os Eternos Desconhecidos”. Destacaria aquele que menos brilho reluziu frente aos espectadores: Carlo Pisacane. No papel de Capanelle, ele está impagável. Desdentado, voz frágil para seus 67 anos à época, cabelos raros e desalinhados e sempre morto de fome, o ator consegue unir o humor e o drama numa adição que poucos intérpretes são capazes de apontar o resultado correto. Vittorio Gassman (que, assim como Pisacane, participou de “O Incrível Exército de Brancaleone”) encarna Peppe com o machismo reservado ao personagem. É valente com os anões, derrete-se pelas beldades. Renato Salvatori dá vida a Mario. Era o 17º filme dele em apenas seis anos de carreira. Marcelo Mastroianni, já veterano, é Tibério. À frente feminina Monicelli deu o dobro de capricho. Claudia Cardinale, então com 20 anos, vive Carmelina, a irmã de outro de Ferribote. Carla Gravina faz Nicoletta, a moça dos namorados múltiplos. Aos 16 anos, ela despejava sensualidade. Rosanna Rory completou o clã das mulheres com a personagem Norma (tal como as demais, na plena adolescência com 17 anos). Desajustes que se deram muito bem nos sets.

Quem pensa que de cara verá o roubo acontecendo, com correria e barulho, está redondamente equivocado. Os primeiros minutos são dedicados a contar as aventuras de Cosimo (o ator Memmo Carotenuto), o ladrão pertencente à organização de gatunos que tem de ser substituído por estar atrás das grades. Cosimo, com sua voz forte e rouca, entrega de bandeja a idéia do século: revela a Peppe, que estava na cadeia para ficar no lugar dele, todas as dicas de como tirar as jóias da loja. Por um imprevisto, o lutador sai da prisão e logo fofoca os detalhes do plano aos comparsas. Para aprender a fazer tudo de modo “cientificamente comprovado”, Peppe pede auxílio a Dante Cruciane (Totò, até hoje considerado o ícone do cinema italiano, que presenteia os espectadores com a sua participação especial), especialista em abrir cofres e caixas-fortes com delicadeza. Sendo uma comédia-pastelão, “Os Eternos Desconhecidos” prima pelo talento. Os atores transmitem ao público segurança de quem sabe o que faz, sem estouros de voz ou trejeitos excessivos. Monicelli estava na ponta da agulha, com 23 anos de trabalho e 17 longas-metragens realizados por ele, escritos, produzidos e roteirizados.

Em 15 de maio, o diretor completará 91 anos de vida. É, Monicelli está vivo. O privilégio de ter uma personalidade de seu calibre ainda neste mundo vai além da esperança. Seria como se, entre nós, estivesse também Ingmar Bergman, Fritz Lang, William Wyler. Para 2006, “A Rosa do Deserto” será lançada. É a 65ª película dirigida por Monicelli. Não sei se repetirá a história de “Os Eternos Desconhecidos”. É difícil. Diretores da altura dele trabalham por qualquer deslize. Na tela, passam a nós a sensação de deixar acontecer. A trupe de atores fica tão solta e leve que dá ao italiano o truque de “dominar a arte de ser desnecessário”, como diz Antônio Abujamra. Porém, não é bem assim. Em cada gesto de Capanelle levantando a colher para degustar seus manjares, Monicelli está lá. Ah, mas Pisacane é um fenômeno!

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 18/07/2009
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