Musa gelada (publicado originalmente em 30/11/2005)

De um lado, os Everglot. Do outro, os Van Dorst. No meio, Victor e Victoria. Mal se viram e terão de se casar. Aí surge a musa gelada, anônima no meio dos vivos, adorada pelos que já se foram. Ela faz Victor enxergar através de sentimentos que ele quase não conhece: alegria, felicidade, paixão. Enquanto isso, Victoria sofre em seu quarto. No vilarejo onde mora, a garota escuta os murmurinhos sobre a “fuga” do noivo. O diretor aborda de maneira peculiar os encontros e desencontros de duas famílias inglesas do ano de mil oitocentos e tanto faz. São conservadoras. Só o dinheiro vale a eles e o casamento arranjado dos filhos vem a calhar quando estão à beira da falência. E, de tanto errar seus votos no ensaio do casamento, Victor foge mesmo de seus pais e sogros. A vergonha o faz caminhar pela estrada que dará na trama do filme. Interpretar esse desespero é a tarefa que o moço necessita desvendar para si próprio. É quem sofre. Ao topar com o cadáver, penetra em um planeta de delírios. Como canta Adriana Calcanhotto em “Parangolé Pamplona”, “E é só deixar a cor tomar conta do ar”. Deixando-se levar, Victor, ainda com seu smoking impecavelmente passado, brinca com fantasmas.

De repente, a deusa de um filme aparentemente para crianças não tem o olho direito. No lugar, um bicho esquisito salta e se perfaz de consciência. Também o braço esquerdo falta. São só ossos ali. Rosto, pálido, como quem acabou de... Morrer! Em “A Noiva Cadáver” (2005), a “mocinha” da fita é exatamente uma morta-viva. E sem nome. A protagonista do filme dirigido por Tim Burton, porém, nada possui de assustadora. Ao contrário. É apenas a mulher mal amada, assassinada pelo namorado ambicioso nas sombras cadavéricas londrinas do século retrasado. Ela se vê novamente prestigiada quando o tímido e desajeitado Victor Van Dorst treina suas frases de seu casamento com Victoria Everglot numa medonha floresta. Ao colocar a aliança em um disfarçado galho de árvore, faz a morta reviver, ou melhor, ela o faz ir para o além. A noiva-zumbi leva o pobre Victor ao mundo onde os caixões são lugares para se dormir, caveiras se transformam em dondocas fofoqueiras e a respiração é artigo de luxo. À primeira vista, o rapaz fica amedrontado e cheio de receios. Mas logo se encanta por aquele local, no qual sua vida parece ter sentido, todos são alegres e a diversão é, de fato, infinita.

“A Noiva Cadáver” é o 12º longa-metragem comandado por Burton. Os outros 11 têm pitadas de anomalias. É característico deste californiano de 47 anos, completados em 25 de agosto. De “Os Fantasmas se Divertem” (1988) até seus dois últimos – “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005) e o tocante “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (2003), há sempre seres estranhos. Edward, aquele das mãos de tesoura (1990), por exemplo. Ou então o cavaleiro sem cabeça, de seis anos atrás. O roteiro fúnebre de “A Noiva Cadáver” nada mais é do que uma continuação, entre aspas, das fitas de Burton. Esse ar melancólico, misturado com ironias e tiradas sarcásticas, está nas tramas dele do mesmo modo que Quentin Tarantino só sabe fazer filmes onde a violência é o personagem principal. Não que os trabalhos de Tarantino sejam péssimos, até porquê a maioria não o é. E nem “A Noiva Cadáver” é ruim. Totalmente o oposto: é meigo, afável e carinhoso. Trata-se da primeira animação em stop-motion – técnica de filmar objetos inanimados – a utilizar o programa Apple's Final Cut – de câmeras ágeis – em edição. São sobrevidas de Burton: sabe emocionar com suas tantas esquisitices.

Aposto, como diz Bárbara Gancia, “um picolé de limão” como “A Noiva Cadáver” será selecionado para a festa mais importante do cinema mundial, marcada para cinco de março em Los Angeles. História (roteiro de Caroline Thompson, baseado em obra de John August e Pamela Pettler) fascinante, bonecos praticamente reais. Vemos nossos rostos ali. Percebemos que a gelada desta fita cômica é Victoria, dos olhos esbugalhados, não a noiva do título. A morte mais contente que o ser humano pode acreditar.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 15/07/2009
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