Eis a questão (publicado originalmente em 9/11/2005)
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que tem sido tema recorrente nesta coluna, vejam só, teve seu lado inevitavelmente bom. Fez com que os cineastas contemporâneos a esta tragédia que se abateu sobre o planeta criassem obras raras que caricaturavam os nazi-fascistas. Como esquecer, por exemplo, “O Grande Ditador” (1940), filme-símbolo desta era? Ou então “Interlúdio” (1946), sob a regência do maestro Alfred Hitchcock? A lista se prolongaria como fichas da polícia. O cinema cai bem quando ocorrem os fatos desgraçados. Na ditadura militar brasileira (1964-1985), borbulhava o Cinema Novo, estilo de filmar incomparável que revelou vários talentos do porte de Glauber Rocha, Carlos Diegues e Arnaldo Jabor. Agora, pedirei perdão para Charles Chaplin. “O Grande Ditador” é o segundo longa-metragem mais engraçado realizado durante o período bélico. A primeira posição é de “Ser ou Não Ser?” (1942), dirigido pelo alemão Ernst Lubitsch. É escracho fino, bem comandado. A idéia de mostrar o quão cegos estavam os comandados do líder nazista Adolf Hitler era fascinante, e, de quebra, rir nos olhos claros dos alemães transtornados, sempre com a luva de pelica a tiracolo.
A história de “Ser ou Não Ser?” gira em torno do fracassado ator polonês Joseph Tura (Jack Benny). Ele trabalha nos palcos daquele país quando o exército hitlerista invade a capital, Varsóvia, e marcha, triunfante. Desesperados para fugirem de lá, a companhia teatral arma um plano, que, claro, tem tudo para dar errado. Maria Tura (Carole Lombard), esposa de Joseph, tem um amante: o jovem militar Stanislav Sobinski (Robert Stack), que é espectador assíduo das peças de Joseph, em especial “Hamlet”, e tem a mania de sempre se levantar quando o protagonista diz a famosa frase “ser ou não ser, eis a questão”. Ressabiado, o ator se mexe para não perder a companheira. Quando Sobinski vai servir seu país, aquele plano da companhia começa a ser executado, pois neste instante tanto o senhor Tura quanto o aviador estão juntos, na resistência polonesa. É neste momento que o humor não pára de correr. A elegância de Joseph é testada quando ele se disfarça de várias personalidades nazistas para se safar da execução. A descoberta de um traidor complica a situação do medíocre intérprete. As encenações seguem. Ótimo para o público que vê o inseguro Joseph fazer seus melhores papéis.
Quando rodou “Ser ou Não Ser?” Lubitsch estava na ativa há quase três décadas. Começara a carreira aos 22 anos, em 1914. Após a fita antinazista, o diretor faria somente mais quatro filmes, já que morreria em 1947, de ataque cardíaco, prematuramente, aos 55 anos. Outro ponto curioso que envolve esta película é a vida curta. Ernst faleceu aos 55. Carole sequer foi ao lançamento do filme. Poucos dias depois do término das filmagens, ela morreria em um acidente de avião, aos 33 anos. O ator Stanley Ridges, que encarnou o professor Alexander Siletsky, peça importante na trama, também não resistiu a um enfarte e se foi aos 59 anos, em abril de 1951. Henry Victor, o capitão Schultz, o personagem mais fiel do longa, foi acometido por tumor cerebral e desapareceu aos 52 anos. Com Felix Bressart, mais um ator componente da trupe de “Ser ou Não Ser?”, teve leucemia e faleceu 15 dias depois de completar 57 anos. Apesar desses números cadavéricos, com coincidências fúnebres, a obra permanece intacta. A coragem de Lubitsch, misturada com a temida inconseqüência mentirosa dele, fez com que muitas pessoas ficassem com as orelhas em pé, atentas. Era o alerta para o mundo.
A cena clássica, onde Tura, disfarçado de Hitler, ordena aos dois pilotos nazistas que saltem do avião (e a dupla obedece), mostra o quanto o diretor alemão queria salvar seu país daquela poeira em que a nação germânica havia se metido. Talvez as mortes antes dos 60 anos das pessoas citadas no parágrafo anterior tenham sido reflexo desta missão. “Está certo. Vocês todos cumpriram exatamente aquilo que eu pedi. Podem vir.” Estas palavras poderiam ser pronunciada por qualquer indivíduo. O endeusamento faz jus ao filme. A figura de Sobinski, pode ser, representaria muito mais do que sair no meio do espetáculo de William Shakespeare para se encontrar com sua amada. Ele interrompia a frase mais célebre do teatro: “To be or not to be, that is the question”. A dúvida entre seguir de mãos dadas com o nazismo fez muita gente enlouquecer. A paralisação no filme (Tura fala apenas “Ser ou não ser... Eis...” e olha nervoso o militar caminhar de poltrona a poltrona) significa muito. De tão inseguro que estava o mundo àquela altura da história, a indagação era ser ou não ser nazista. O “eis a questão” era a resposta, que, em pleno 1942, não podia ainda ser dada. Todos corriam perigo.