Amargura (publicado originalmente em 2/11/2005)

Nada pode ser mais triste do que ver que seu filho tem vergonha de você. Para os pais, basta um olhar para a estrutura emocional desmoronar, quando a criança sabe das dificuldades enfrentadas. E no mundo pós-Segunda Guerra, em 1948, os sintomas de desesperança e frustração aterradores se multiplicavam pelos cantos. Em “Ladrões de Bicicleta”, rodado há 57 anos, isso é esplendidamente mostrado. Antonio Ricci (Lamberto Maggiorani) está no meio da multidão de desempregados na vã Itália jogada às traças depois de quase três décadas de regime fascista. Afortunadamente, para a sua surpresa, é lhe oferecido um trabalho, de colador de cartazes. Mas, para isso, tem de possuir bicicleta, senão o serviço será repassado a outra pessoa. Não poderia vir em melhor hora esse emprego, mas Antonio havia acabado de levar a bicicleta na casa de penhores. O azar se transforma na última gota de bondade e amor no gesto de Maria (Lianella Carell), esposa de Antonio. Ela organiza seu enxoval, que ganhara na época do casamento, e entrega ao marido, para que este possa reaver seu veículo.

Porém, apesar de conseguir a “bicci” –como Antonio chama sua bicicleta–, a alegria do homem dura bem pouco. O revés se dá já no primeiro dia de trabalho dele. Ao colar um cartaz, um gatuno foge com sua “magrela” –fato comum de delinqüência no país recém liberto da guerra fatídica, onde as pessoas, desesperadas, buscavam uma maneira de viver melhor. E agora? Sem a bicicleta, que provavelmente iria para o desmanche, Antonio perderia seu serviço. Ele, então, parte em busca de sua sobrevivência. É aí que surge a figura de Bruno (Enzo Staiola), seu único filho. Aos nove anos, acompanha o pai na árdua tarefa de reaver, pela segunda vez, sua bicicleta. Torna-se devoto da idéia cuja solução será difícil encontrar: achar o veículo no meio da multidão. Ambos acreditam que podem resgatá-la. Iniciam a peregrinação. Bruno se mostra frágil. Tem fome, sede. O pai não sabe o que fazer. Alguns suspeitos, na verdade transeuntes sem qualquer culpa, são abordados por Antonio, a esta altura num desespero atroz. O garoto sabe os detalhes da bicicleta: ano, peças, cor, acessórios.

Andando sem rumo pelas ruas italianas, Antonio e Bruno caem na desolação quando, a cada suspeito alcançado, observam a bicicleta mais e mais longe. A amargura fica estampada nos rostos deles. O pai só não abandona tudo por causa do filho. Só não larga sua intensa e malsucedida procura porque sabe que ao seu lado está aquele pequeno menino, transpirando energia. Há em “Ladrões de Bicicleta” a cena aonde ambos vão a um restaurante lindo. Bruno atenta para a mesa em frente à dele, na qual está uma família almoçando fartamente. A vontade expressada num mero olhar. Antonio, vendo aquilo, não se deixa abater: “Vamos comer do bom e do melhor”. Pede um bife. Com a fome saciada, parece que encontrarão a bicicleta na próxima esquina. Claro, não acontece isso. Nas duas angústias, a semelhança vem do elo entre pai e filho. A certa altura, Antonio deixa Bruno por um momento. Levado pelo ódio, para com a sociedade que não lhe dá emprego, aos ladrões, ao planeta, rouba uma bicicleta, para se vingar de alguém que ele nem sabe quem é. Mas ele é apanhado.

Tenha coração forte se quiser assistir esse filme a partir dessa seqüência. Pego pela população que quer linchá-lo, Antonio é salvo pela tristeza do filho. Bruno senta numa calçada, tira o boné, já desgastado pela sujeira, e começa a enxugar suas lágrimas, enquanto vê o pai massacrado por outras pessoas. Por fim, agarra na mão de Antonio, e vão embora. Vittorio De Sica, diretor deste filme, foi um mestre. Trabalhava apenas com atores amadores, porque a verba depois dos conflitos bélicos, era baixa. Maggiorani, Carell e Staiola estavam nas fitas número um. O amadorismo beirava extremos. Toda a filmagem se deu em luz natural, pois todos os estúdios da Itália estavam ocupados com desabrigados da II Guerra Mundial. “Ladrões de Bicicleta” é clássico do Neo-realismo. E De Sica, o ícone desse estilo. O diretor, que esteve em 155 longas-metragens como ator, comandava seu nono filme em 1948, que também roteirizou e produziu. “Ladrões de Bicicleta” não pode ser encarado apenas como entretenimento. É, citando outro filme, “uma lição de amor”. Para a vida toda.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 15/07/2009
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