Sonhos e poesia (publicado originalmente em 28/9/2005)

“Os Sonhadores” (2003) é o segundo filme do diretor italiano Bernardo Bertolucci tema desta coluna. O outro foi “O Último Tango em Paris” (1973), em março deste ano. Estou devendo ainda um texto sobre “Beleza Roubada” (1996), também comandado por Bertolucci. Para mim, estas são as três melhores fitas dele, independentemente de “O Último Imperador” (1987) ter faturado o Oscar de melhor filme. Então, hoje, aqui, “Os Sonhadores”. Primeiro, tenho de confessar: vendo esta história, fiquei ciente de que não sei absolutamente nada sobre cinema. Depois, não vivi a época efervescente de Paris em 1968, quando jovens cheios de idéias na cabeça tomavam as ruas para reivindicar a arte. É sobre a cidade européia, apetrechos culturais, que “Os Sonhadores” se desenrola. O enredo possui uma poesia que chega a beirar o extremo, mas não se encosta nele. Aproxima-se da total beleza, aquela que cega e desespera, como disse Paul Valéry, mas não nos deixa tampar nossos olhos. A fita nos mostra como um diretor de 62 anos (na época das filmagens) faz o que bem entende com as suas lembranças da juventude. E brinda-nos com um roteiro emocionante, político, destemido e sem medo de represálias. O espectador fica estupefato com os movimentos e as aventuras do filme.

Mas quem for alugá-lo ou comprá-lo não pense que levará para casa uma película suave e doce, porque “Os Sonhadores” nada tem de doce e suave. Na trama, dois irmãos gêmeos “siameses”, Theo e Isabelle (respectivamente, Louis Garrel – em 2003 com 20 anos – e Eva Green, então com 23, os dois nascidos em Paris na vida real) conhecem o norte-americano Matthew (Michael Pitt), que está na “Cidade Luz” fazendo intercambio, e convidam a passar uns dias na enorme casa deles, enquanto seus pais viajam. O trio freqüenta a famosa Cinemateca Francesa, local onde se formou uma geração de cineastas e críticos de cinema. O fundador, Henri Langlois (que aparece em rápida imagem, subindo as escadas da entrada da Cinemateca) é destituído. Isso é o estopim para as passeatas e protestos dos jovens que costumavam visitar o lugar. Matthew, notadamente o mais tímido e desorientados dos três amigos, é, claro, quem mais será “vítima” deles. Essas aspas têm motivo: o rapaz se envolverá em jogos onde o que vale são conhecimentos cinematográficos e as prendas para quem errar nessas tolas brincadeiras podem ser qualquer tarefa. Qualquer uma mesmo. Há 29 citações de fitas dos anos 1930 e 1940, como, por exemplo, “Picolino”, com o bailarino Fred Astaire.

Aos poucos, devagar, o cenário do longa-metragem muda. Passa das ruas de Paris para a casa de Theo e Isabelle. Na residência dos irmãos, as diversas experimentações. Na flor da adolescência, eles querem se testar para averiguar quais são de fato limites sexuais e intelectuais que têm. Inclusive entre os gêmeos, os quais mantêm uma relação incestuosa. Dentre os atores Eva, Michael e Louis, os dois primeiros se dão melhor na tela que o terceiro, apagado naturalmente pelo brilho da dupla. Eva não se acanha em frente às câmeras. Em pelo menos três cenas ela aparece totalmente nua. Michael e Louis não escapam a isso e também surgem sem roupas, mas em menor escala de tempo. Vejam: não há ‘sexo explícito’, nada disso. A pretensão de Bertolucci é ambientar o público para o que realmente ocorreu na década de 1960 não apenas na França, mas em todo o mundo. As aspirações políticas e descobertas sexuais estavam, podemos assim denominar, “na moda”. Uma simples respiração errada dos homens que lideravam os países já era motivo para movimentos organizados nas ruas. No Brasil foi assim com o golpe de 1964, nos EUA, com o macartismo, na ex-União Soviética contra a Guerra Fria etc. “Os Sonhadores” sugere utopias centradas em frases e cenas de filmes inesquecíveis.

Determinadas cenas deixam o espectador às lágrimas com tanta representação poética, de vasta recordação. Quando os três correm num dos corredores do Museu do Louvre, contrastando a imagem com o preto-e-branco de “Bande à Part” (1964, de Godard) é uma delas. Outra é quando os pais de Theo e Isabelle voltam de viagem e observam os três dormindo, entrelaçados e nus, debaixo de uma cabana improvisada na sala, como três crianças que adormeceram depois de tanto brincar. Ao invés de repreensão, os pais dos gêmeos se vão depois de deixar um cheque para futuras despesas. Minutos depois, quando Isabelle desperta e percebe o dinheiro sobre a mesa, parece que toda a carga de culpa dela vem a tona. Tenta cometer o suicídio. Enfim, “Os Sonhadores” é revoltantemente bonito, seja pelas imagens, pelas citações ou pelas imagens antigas postas durante a fita, que pode ser recortada em três partes: cidade, casa, cidade. No começo, a revolta. No meio, a casa de Theo e Isabelle. No fim, de volta às ruas. Quem detestar cenas mais ousadas, nem passe os olhos no longa. Quem desejar saber o que perdeu por ter nascido, e não vivido, nos anos 1960 e 1970 em Paris, pode esperar boas doses de liberdade. “Os Sonhadores” mistura tudo de bom. Sai um caldo descaradamente espetacular.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 10/07/2009
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