A garoa e o provocador (publicado originalmente em 21/9/2005)

Fui para São Paulo neste fim de semana. Ah, como eu adoro São Paulo. Sua pressa, a agitação periclitante, tropeções a todo o momento, esbarrões. E todo mundo se xinga, buzina, dá esmolas, mas abraça, sorri e vive em meio àquelas poluições, seja sonora, fumaça, visual. Enfim, gosto bastante de ir a São Paulo, de verdade. Não fiz faculdade lá. Porém, minha pós-graduação foi desenvolvida ali, na PUC. Em São Paulo tudo é multiplicado por 100. Há centenas de teatros, cinemas, casas de espetáculos, restaurantes, hotéis, lojas. Quem vai a SP é sugado por cultura se desembolsar um bom dinheiro. Mas nem sempre. Por exemplo, em meio ao frio cortante que fazia, passeei até chegar ao Sesc da Vila Mariana. Fui ver “A Voz do Provocador”, monólogo de Antônio Abujamra. Compradas as entradas (15 reais; 7,50 a meia entrada)– estávamos em grupo de quatro pessoas –fomos ver o que fazer para nos distrairmos naquelas duas horas que faltavam para o início do show. Shopping ao lado, seguimos. Olhamos os ponteiros: 16h15. Ainda tínhamos tempo. Enfim, 45 minutos antes de vermos Ravengar de perto, entramos em definitivo no Sesc. Lugar aconchegante. Morno. Pelo menos com mais graus do que fora, onde o termômetro apontava 15º (com a claudicante sensação de apenas 5º).

Meia hora antes, a porta da sala se abriu. Fomos os quatro primeiros a adentrar o espaço onde “A Voz do Provocador” se desenrolaria. Local com capacidade para 131 espectadores. Aos poucos, íamos esquecendo o frio da rua e nos importando com o ambiente. Nada demais no cenário: a mesa coberta por uma toalha toda em retalhos, microfone, um enorme cartaz de Abujamra com aquele seu ar de “sabe tudo” e um telão. Só. Soou pela primeira vez a campainha, que avisava faltar 15 minutos. Levei um susto. Soou pela segunda vez: cinco minutos e outro susto. Enfim, tocou pela última vez. Das 131 poltronas, havia cerca de 15 vazias. Veio a voz do locutor: proibia celulares ligados, entre outras recomendações. Antônio Abujamra entrou em cena. Silêncio. Sem aplausos. Sento-se e logo se pôs a falar. Todos os papéis estavam na mesa dele, organizados, bem orquestrados. Leu durante alguns minutos. Poesias, frases sobre teatro, histórias da vida. E sempre desencantado com tudo. A essa altura, as 15 cadeiras vazias tinham sido preenchidas, com pessoas que entraram já com “Abu” ditando suas regras. Ele nem se importou. Estava com a roupa do cartaz de divulgação: camisa azul, suspensórios vermelhos, óculos redondos e um colar que ganhou de um índio anos atrás.

“A Voz do Provocador” pode ser definido pelas palavras citadas aqui: peça, show, espetáculo, monólogo. Tem um pouco de cada coisa. Abujamra atua, dá seu testemunho sobre a vida, brinca com a platéia, declama como ninguém, se vê no telão, também dizendo poemas. Vai de Proust a Walter Clark, passa por Nabokov e Dustin Hoffman, atinge Robert DeNiro, Gisele Bündchen e Leonardo DiCaprio. Mas continua inconformado com o país. Conta “causos”. O público se diverte. Dei risada com suas narrações. Quando percebi, nem me lembrava mais do frio. Parecia que estava no estúdio de gravação do “Provocações”, tal o intimismo deixado por Abujamra. Ele sabe comandar todas as nossas emoções. Quando diz que vamos gargalhar, nós rimos demais. Agora, mais sério, exibe uma resposta de Cristovam Buarque, lida por Abujamra, sobre internacionalização da floresta amazônica. Pede para acender a luz da platéia, para enxergar as caras das pessoas. O público, formado a maioria por jovens de 20 anos, tem também senhoras e senhores de 60 e poucos anos e adultos de 40 e tantos. Olho as horas: passaram-se 40 minutos de “A Voz do Provocador”. Voou esse tempo! Se durasse três horas, nem sentiríamos. Para nosso deleite, nos restavam aproximadamente mais 50 minutos.

Vi tanto a reportagem feita pelo programa “Metrópolis”, da TV Cultura, como a do caderno “Telejornal”, do jornal “O Estado de São Paulo”. Precisava assistir Abujamra. Vê-lo de perto. Posso afirmar que não me arrependi, sendo este ator e diretor um de meus ídolos. Tanto que já estou certo que irei novamente, pois o espetáculo vai até 15 de outubro e não tem como se repetir, porque os assuntos são improvisados, apesar de haver um pré-roteiro. Abujamra foi ácido, ultrajante, sincero. É o bloco para reflexão, audição e meditação. Terminada “A Voz do Provocador”, os aplausos ausentes na abertura vieram em avalanche. E todos em pé. Abujamra fazia as reverências, em cada canto do palco. Abria os braços, agradecido. Teve sensibilidade para fazer a provocação derradeira: “Quero os aplausos de joelhos! Não aceito mais de pé!”. Por pouco a gente não se ajoelhou, como se aquele senhor de 73 anos fosse um santo de carne e osso. Não era para tanto. Quando saímos, surpresa: lá estava ele, sentado em um dos sofás da ante-sala, recebendo cumprimentos, elogios. Nada de fotos, autógrafos. É avesso a isso. No show, disse isso para quem quisesse escutar. Para quem não quisesse também. Saímos ainda em êxtase. Aí, nos demos conta da garoa que caía. O frio tinha aumentado.

Ah, como eu adoro São Paulo...

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 10/07/2009
Código do texto: T1693279
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