De passagem (publicado originalmente em 7/9/2005)

Quase ninguém terá acesso ao documentário “Passagem”, lançado mês passado. O ‘quase’ se refere àqueles telespectadores assíduos da TV Cultura. “Passagem” faz parte da segunda temporada do projeto “DOC Brasil”, que reúne trabalhos de diretores anônimos que puderam fazer suas obras graças a ajuda da emissora paulistana e do Ministério da Cultura. Em 2005, 810 inscrições foram recebidas dos 26 Estados brasileiros mais o Distrito Federal. Destas, apenas 35 (pouco mais de 4%) passaram pelo funil de qualidade e puderam ser erguidos. Concluídos, o primeiro deles, exatamente o tema desta coluna, foi exibido no último domingo de agosto – o 35º está previsto para ir ao ar apenas em maio do próximo ano. “Passagem”, dirigido por Jaime Lerner, narra, através de imagens, um dia na rodoviária de Porto Alegre (RS). Na maior parte do tempo sem som algum, chega a lembrar, de certo modo, “Suite Habana” (2003), documentário cubano sobre o qual escrevi em junho. Mas há palavras na fita brasileira. São entrevistas colhidas pela produção, seja com motoristas de ônibus, carregadores ou os passageiros, que estão naquele lugar por singelos minutos. Estes passageiros só dizem o lugar de onde vieram ou falam o local que vão, nada mais. Então, conhecemos as cidades.

Cidades representadas numa só: Porto Alegre. Ônibus vai, ônibus vem, e lá estão comerciantes e transeuntes declarando suas histórias aos entrevistadores. Em uma delas, a funcionária conta como encontrou um homem morto: “Ele estava sentado, não se mexia. Quando fomos ver, estava morto. Morreu de frio”. Quantos rostos são vistos e imediatamente esquecidos? A rodoviária é o lugar no qual todos se esbarram, mas raros são os que param e prestam atenção em algo. Estão todos ligados no seu destino, ou na sua chegada. Pessoas assustadas, com malas nos ombros, mochila nas costas, sacolas nas mãos. “Passagem” retrata isso. Lerner soube aproveitar cada sensação e dividiu o filme em pequenos quadros. Há o trecho das mastigadas, quando os passageiros matam a fome. Depois, é um rapaz solitário que, imóvel, vistoria a corrida de gente contra o relógio. E, o mais tocante destes quadros, o das despedidas. Com trilha sonora que nos faz querer abraçar alguém, o longa mostra os namorados, amigos, casados, parentes, todos eles dizendo tchau, seja através de beijos, abraços, ou somente recomendações, como “vou sentir saudades” ou “volta logo”. Lerner, que também assina o roteiro, pesquisa e direção de fotografia, imprime seu toque pessoal na obra, de cerca de 60 minutos.

O DOC Brasil havia revelado, em 2004, algumas obras consideráveis. Uma delas foi “Batalha para a Vitória”, dirigida por Wolney de Oliveira, analisada neste espaço há 13 meses. “Passagem” ainda é o primeiro que foi exibido. Atrás dele existe uma leva de outras dezenas de trabalhos. E no frio dos pampas gaúchos, o média-metragem de Lerner continua. Determinados detalhes não podem ser deixados de lado. O principal é a maneira extremamente delicada que o diretor aborda todos os personagens, sejam eles simples empregados ou passageiros de classes remediadas. As pessoas têm cada uma o espaço necessário para transmitirem seus recados, sem exagero ou economia. Logo no início, quando é mostrado o panorama da rodoviária nas horas iniciais da manhã, nota-se o profundo e determinante silêncio. Esse, dá a impressão, seria o tom da fita. Puro engano. À medida que fatos acontecem, o espectador aprende a se afeiçoar com o dono do restaurante, ou com a faxineira, ambos ganhando a vida naquele lugar cheio, ao mesmo tempo vazio. Se compararmos nesta direção, o filme de Lerner tem muito a ver com “Suite Habana”. Naquela obra, a estrela era Havana, capital do país liderado por Fidel Castro, e população. No brasileiro, é também o país, reproduzido numa rodoviária.

Como no velho ditado popular, “estamos aqui de passagem”. E, tal qual este dito, as filmagens do Rio Grande do Sul transcorreram de forma não-estereotipada. Na tarefa árdua, saíram vencedores o público e a equipe dos sets. “Passagem” foi exibido, desde 28 de agosto, três ou quatro vezes. A última ocorreu domingo, quatro de setembro, às seis horas da manhã. As demais, à noite, também na estação carioca TVE. É pena que somente pouquíssimas pessoas assistiram a fita, se considerarmos que este tipo de programa que não atinge um ponto na audiência. Mas temos que aplaudir a iniciativa da TV Cultura e do Ministério, cuja força está no cantor e compositor Gilberto Gil. É assim que se constrói trabalhos honrados e se “criam” novas safras de diretores e roteiristas. Se “Batalha para a Vitória” se consagrou e foi mostrado no Festival do Ceará, “Passagem” pode muito bem superar esta meta e chegar no próximo prêmio de Gramado (RS), conterrâneo, por exemplo. Talento tem lá, e de sobra. Parabéns a todos os envolvidos nestes projetos. Quem ganha é o Brasil, e, com ele, o cinema nacional.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 09/07/2009
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