Duas encrencas (publicado originalmente em 24/8/2005)

Em 1976, numa curiosa entrevista dada a Hélio Costa, então repórter do programa ‘Fantástico’, da Globo, e atualmente ministro do governo Lula, o diretor inglês Alfred Hitchcock afirmou que seu filme preferido era “O Terceiro Tiro”, rodado em 1955. Não é a minha fita predileta. Nem a segunda. Mas é a opinião do mestre do suspende que vale mais, claro. A fita revelou a atriz Shirley MacLaine, na época com apenas 20 anos de idade. É dos trabalhos raros de Hitchcock em sua era hollywoodiana que não conta com uma estrela de peso no elenco. A história, de pouco mais de uma hora e meia de duração, narra as confusões em torno de um cadáver difícil de ser enterrado (o título original tem o nome, em português, de “O Problema com Harry” – Harry é o tal defunto travesso). Tudo começa quando Arnie, um garoto de sete anos, ouve três tiros vindos de uma floresta. Ele corre até o local e testemunha o assassinato de Harry. Vai avisar a mãe, Jennifer (Shirley MacLaine). E, a partir deste fato, inicia-se a dúvida: o que fazer com o corpo do pobre homem? Nesse enredo que envolve muito humor negro, tiradas engraçadas e o suspense em doses catalisadas, o público é tragado para dentro de uma aventura cheia de alternativas – característica básica das películas comandadas por Alfred.

Tudo se passa em uma pequena cidade. O rosto do morto jamais aparece. O que se pode notar são somente os pés dele, sempre apontados para cima. Desastradas teses de como se livrar daquele “trapo” são dadas pelos moradores, assustados, mas ao mesmo tempo despreocupados com a solução que o caso pode tomar. Pessoas tropeçam em Harry, trombam nele, zombam. “Vamos depressa com isso, porque tenho que tomar um chá hoje a tarde”, diz uma das personagens. Por aí se vê como eles, os habitantes do pequeno município, se importam com o cadáver. “Daqui a pouco a televisão estará aqui para mostrar tudo”, adverte outra pessoa. Ademais, a coisa não pode ficar como está. Harry, de qualquer maneira, tem de ser enterrado. Edmund Gwenn, como o capitão Albert Wiles, está ótimo. O ator estava com 80 anos quando fez o papel, o antepenúltimo de sua carreira. Seus movimentos bem usados, as falas ditas com certa displicência, fizeram de Wiles o senhor do filme, junto com o menino Jerry Mathers, o Arnie. Tanto Edmund quanto Jerry demonstraram que estavam em sintonia, um com o outro – o primeiro já no fim da vida, o segundo, no começo. A junção dessa dupla transformou “O Terceiro Tiro” num entretenimento bom de assistir, ainda mais com MacLaine no auge de sua beleza.

Talvez “Pacto Sinistro” (1951), também de Hitchcock, tenha resvalado em “O Terceiro Tiro”. O roteiro contém aquele humor duro de engolir. Guy Haines, tenista profissional, tem oportunidade de conhecer Bruno Antony, rico perdulário, num trem. Tendo lido tudo sobre o esportista, Bruno está sabendo que o jogador de tênis tem um casamento infeliz e foi visto na companhia de Anne Morton, filha de senador. Inoportunamente, o milionário revela para Guy que sempre odiou o próprio pai. O jogador de tênis escuta Bruno discursar sobre a teoria da “troca de assassinatos”. Supondo que Bruno matasse esposa de Guy, e, em troca, o tenista assassinasse o pai de Bruno, não haveria conexão entre os assassinos e suas vítimas. No momento das mortes, os interessados teriam álibis que os deixariam livres de qualquer suspeita. Ao chegar no seu destino, Guy se despede de Bruno sem pensar mais na teoria homicida dele, que considerou uma piada de mau gosto. Mas Bruno, em sua loucura, entendeu que havia um pacto entre eles. Em pouco tempo a coitada Miriam é estrangulada. Bruno, então, quer que Guy mate seu pai e cumpra sua parte no acordo. Nesse vendaval de mortes à toa, o público se satisfaz. A cena do carrossel, já no desfecho da obra, é das mais impactantes da história do cinema.

Explicado está, desta feita, as duas encrencas: enterrar Harry (“Terceiro Tiro”) e contrabalançar a matança, a qual serve para devolver o “favor” de um maluco (“Pacto Sinistro”). Sem derrapar, o diretor inglês manobra seu público como gosta. Na entrevista do “Fantástico”, em determinado momento, ele dá um exemplo sobre como fazer o suspense: “Imagine se alguém ali atrás de você tivesse com uma faca e se aproximasse para te matar. Você não vê o matador, mas os espectadores sim. O público sabe mais que o personagem. Quer gritar para ele correr, mas sabe que não pode ajudar. Isso é o bom suspense”.Na mesma conversa, revela que a melhor cena desse tipo já dirigida por ele está no filme “Psicose”. Mas não é a seqüência do chuveiro, e sim a do detetive que entra na casa da mãe do assassino psicótico. “Para uma cena desse tipo, precisa-se explicar antes às pessoas, dar um exemplo. Assim, eles sabem que a mulher vai sair de qualquer lugar e matar aquele homem. E é o que acontece”. Os mestres são assim. Dão aula.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 09/07/2009
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