Um cinema (publicado originalmente em 13/7/2005)

Toca o telefone. Totó, um cinqüentão, acorda assustado. A notícia não é boa: Alfredo, amigo dele desde a infância, morreu. Totó, então, decide retornar à sua cidade natal para, no enterro, poder se despedir do velho companheiro. E, a partir deste fato trágico, recorda toda sua vida. É assim que “Cinema Paradiso” (1988) se desenvolve: das lembranças de um homem que, depois de virar cineasta famoso, se rende a emoção quando seu parceiro de tantos anos vai embora. No recuo do tempo, vê-se Alfredo, projecionista do cinema paroquial do pequeno município de Giancalda, na Sicília, na época do pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), portanto, ainda sem a televisão. Nota-se também o garoto Totó, com seus sete, oito anos, deslumbrado com as luzes do ecrã, encantado com aquelas imagens em movimento. Para conseguir entrar sempre na sala de exibições, o menino se aproxima de Alfredo, já com uns 50 anos. Faz amizade rapidamente. Mas isso é pouco. Os padres de lá censuram a maioria dos filmes: eles assistem antes e cortam todas as cenas “ousadas”, como as que aparecem beijos, por exemplo. Por aí percebe-se o tamanho da encrenca. Religiosos pudicos, espectadores prejudicados. A fita prossegue com o avançar dos anos do esperto e travesso Totó.

O garoto vira coroinha. Ajuda Alfredo na projeção dos filmes. Mas não é fácil. Especialmente devido ao mau humor e rabugice da dupla. Aí estão os momentos mais engraçados do longa, dirigido por Giuseppe Tornatore (o mesmo de “Malena”), também responsável pelo roteiro. As brincadeiras entre ambos dá tom ameno à película. Salvatore, nome de Totó, é interpretado por Salvatore Cascio. Já o projecionista é encarnado por Phillipe Noiret. Para quem teve prazer de ver “Cinema Paradiso”, escrever que os dois deram show de interpretação é “chover no molhado”. Mas, continuando no reino das águas, foi um banho de emoção à flor da pele. Alfredo vira espécie de pai para agora adolescente Totó. Particularmente quando o jovem quer paquerar uma bela moça de olhos azuis. “As de olhos azuis são sempre as mais difíceis”, diz o conselheiro. O flash-back continua. Descobrem-se motivos suficientes para a paixão desenfreada de Salvatore pela sétima arte, ali, naquele pequeno espaço onde são mostrados filmes a gente que vai lá para sonhar, ou rabiscar outros futuros na frente de histórias novas e fantasiosas. Há, como em todos enredos, o entrave: Cinema Paradiso está para ser demolido. Como agir para que a única jóia de Giancalda sobreviva?

Mais um salto no tempo. De volta ao funeral. A fita está prestes a acabar. O fôlego toma conta dos amigos de Alfredo. Lágrimas são inevitáveis. É como se nós mesmos, espectadores, voltássemos às nossas lembranças da infância. Nesse ínterim, desenha-se o cenário que a Itália. Em ruínas, o país destruído pelo conflito bélico aos poucos se renova. A reconstrução vem devagar, igual ao cinema da cidadezinha siciliana. Com calma, as histórias se sobressaem. As travessuras se transformam em pura saudade. As discussões bobas são substituídas por um aceno de adeus. Os ensinamentos de Alfredo agora se restringem às frases que vem à mente de Totó. Quando percebe que nunca mais terá seu fiel escudeiro do lado, ele desaba. Encarar a perda é difícil. Com a morte do projecionista, vão embora com ele símbolos da Itália, como o país assolado pela guerra, dos mandos e desmandos de Mussolini, do caos das décadas de 30 e 40. São lenços demais para tantas tristezas misturadas com realidade. À parte disso, a fita levou prêmios. Dentre eles, destaca-se o Oscar de melhor filme estrangeiro na festa de 89 e Globo de Ouro da mesma categoria. Em Cannes, na França, levou prêmio do júri. No César, honraria do cinema, ganhou o curioso prêmio de melhor pôster.

“Cinema Paradiso”, é, para muitos, um afago carinhoso. Sempre foi assim quando o longa trata de relações de amizade entre adulto e criança. Anthony Hopkins, Anton Yelchin e Mika Boorem, o trio de “Lembranças de um Verão” (2001), que abordei aqui na coluna de julho do ano passado, são exemplo disso. Ainda mais recentemente, o ator egípcio Omar Shariff voltou aos holofotes com seu terno “Monsieur Ibrahim (2003), ao lado do garoto Pierre Boulanger. Omar, 73 anos, esteve cotado para o Oscar de melhor ator, mas não foi sequer indicado. Os exemplos são infinitos. Vai de “Mary Poppins” (1964), onde Julie Andrews contracena com um casal de irmãos, até os bobinhos “Grande Garoto” (2002), com Hugh Grant e Nicholas Hoult, e “Menina dos Olhos” (2004), com Liv Tyler, Ben Affleck e Raquel Castro. Porém, na fita de Giuseppe Tornatore, isso transborda. O afeto garante tudo. Evidentemente, são sentimentos manjados, manipulados para guiar o espectador. Tudo está lá de maneira coordenada. Cada cena, cada abraço. E, depois de tudo, está seqüência dos beijos, aqueles mesmos cortados pelos padres. Gestos simples num filme inesquecível.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 04/07/2009
Código do texto: T1682852
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.