Alienado (publicado originalmente em 6/7/2005)

Às 20 horas de 30 de outubro de 1938, os Estados Unidos pararam. Um programa de rádio foi a causa dessa paralisação. O ator e diretor de cinema Orson Welles, que ficaria superfamoso três anos depois ao protagonizar e dirigir “Cidadão Kane” (1941), era, naquele instante, o apresentador de “O Sombra”, atração radiofônica cuja voz principal até então ninguém conhecia. Baseando-se no livro “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells, Orson abriu o especial “A Guerra dos Mundos” avisando os ouvintes de que aquilo era uma clássica história de ficção. Não adiantou. Em Nova Iorque, pessoas correram nas ruas com lenços nas bocas para se proteger do tal “gás marciano”. O trânsito ficou com engarrafamento recorde para a época. As linhas de telefone, todas bloqueadas. Nunca tanta gente foi ao mesmo tempo aos hospitais dizendo-se “em choque”, diante da ameaça de aterrissagem alienígena nas cidades norte-americanas. Aos 23 anos, Welles (não confundir com Wells de H.G.) e seu grupo de teatro “Mercúrio”, quase causou uma catástrofe nacional. O que era para ser uma comemoração de Halloween se transformou numa hecatombe cerebral. A simulação de cobertura jornalística rendeu muito além do esperado. A população estava em pânico.

Na farsa, falsos repórteres noticiavam invasões de seres extraterrestres. Também falavam sobre as características físicas deles, como se estivessem os vendo. O ataque marciano, que teria começado na cidade de Nova Jersey, durou algumas horas, dizia o cineasta. Tive oportunidade de ouvir trechos do programa quando fiz faculdade de jornalismo. A fita, original em inglês, foi levada por um dos professores. Durante a transmissão, dava para escutar gritos vindos de fora da rádio. O entusiasmo do apresentador contou neste ponto. Orson Welles dava a impressão de acreditar no que afirmava. Os barulhos impressionam. Nada mais eram do que efeitos especiais da emissora. Ouvem-se buzinas de carros. H.G. Wells (sigla de Herbert George), escritor inglês, morreu em 1946 pouco antes de soprar as velinhas de 80 anos de idade. Não viu, portanto, a primeira versão cinematográfica de sua maior obra, rodada em 1953 e dirigido por Byron Haskin, com Gene Barry e Ann Robinson no elenco. Sem alardes, a fita passou despercebida. Mais de meio século depois, 2005, Steven Spielberg, o mesmo de “ET – O Extraterrestre” (1982) e “Contatos Imediatos de Terceiro Grau” (1977), refez o filme. Pôs Tom Cruise no papel principal. A história ficou mais suave.

Com todos os holofotes apontados para seu umbigo, Cruise se vira como pode para interpretar Ray Ferrier, trabalhador honesto, mas desleixado com o casal de filhos – Robbie, de 16 anos, rebelde sem causa e sempre às turras com o pai, e Rachel, a garota de dez anos claustrofóbica e inteligente demais para sua idade, magistralmente feita pela atriz Dakota Fanning, a mesma de “Amigo Oculto” (2004). Separado, Ray só vê os rebentos nos fins de semana. E num desses sábados e domingos, ele assiste a uma chuva de raios. A impressão de chuva passa rápido. Os raios caem mais de duas vezes no mesmo lugar. Logo saem debaixo da terra os tripods, máquinas guiadas pelos ETs, enterradas nos locais há milhares de anos. Aí o personagem de Cruise pode se reabilitar diante dos filhos. E do jeito mais inusitado: salvando-os da captura dos monstros. Está aí o ponto fraquíssimo da fita. Os seres do outro planeta ficam em segundo plano. O que importa para S. Spielberg é a família, não aqueles das antenas. Ao deixar os ETs de lado, pôs também sua película de lado. Com exceção de Dakota, todos os demais, inclusive Tim Robbins, que encarna um neurótico de guerra, estão relegados ao canto. E, enquanto isso, Ray corre para defender seus filhos.

Não foi à toa que Rachel, apavorada e aos berros (ensurdecedores, aliás), pergunta ao pai duas vezes se são os terroristas atacando os norte-americanos. De novo, os atentados de 11 de setembro de 2001 na cabeça. Se no roteiro de 1953 a paranóia era a Guerra Fria (1947-1989), no enredo deste ano a preocupação maior fica com os homens-bombas e seguidores de Osama bin Laden. “A Guerra dos Mundos” de Steven Spielberg tinha tudo para ser a explosão na história do cinema. Isso se o diretor não fosse ele. Assim como fez em todos os seus outros trabalhos, destrói os longas-metragens no fim. Apaga a magia dos efeitos especiais. Além disso, a individualidade atrapalha: só o carro de Ray não é atingido, o mesmo carro passa quase todos os obstáculos, da família dele não morre ninguém (a ex-esposa, casada com outro, está grávida) etc. Coisas de filmes. Que estragam os filmes. Ademais, para 2006, na festa do Oscar, entrará apenas em categorias técnicas. Nem para diretor estará, aposto. E eu, que entrei na sala de cinema esperando assistir o “filme do ano”, saí de lá tendo visto “mais um filme deste ano”. Decepções à parte, é esperar novos projetos. “A Guerra dos Mundos” deixou todo mundo meio alienado. Eu, inclusive. E Spielberg, totalmente.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 04/07/2009
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