Sem tudo (publicado originalmente em 22/6/2005)

Sem ânimo. Assim é “Suite Habana” (2003), filme cubano que vi sábado passado. Nele, vários habitantes da capital do país governado por Fidel Castro são mostrados nos respectivos cotidianos. E não há nada mais avassalador para corações fracos. A fita, cuja duração é de 85 minutos, é totalmente silenciosa, muda. Palavras lá são artigos raros. Detalhadamente, não existe nenhuma, apenas um grito de uma mulher, que se repete duas vezes. Só. No restante, barulho da ressaca do mar, talheres na hora de fazer as refeições, martelo batendo, motores de carros (velhos) pelas ruas. Uma hora e 25 minutos de pura tristeza e piedade. Não tem protagonista, mas o garoto Francisquito rouba a cena. Com dez anos, vive com os avós. Possui os dentes tortos, rosto debilitado, mas sempre a rir, em meio aquela pobre casa, aqueles pobres seres. A base de “Suite Habana” é simples: dez pessoas residentes no local são filmadas durante um dia inteiro. Então, espectador tem panorama geral do que é atualmente Havana. Nota-se ruína que a cidade está. Sua gente paupérrima, cabisbaixa. Porém, isso ocorre com todos. Essa igualdade social, de miséria, é abrangente, desonesta, catastrófica. São pessoas sem esperança, com rumo desconhecido.

Sem vida. algumas imagens impressionam. Em uma, a senhora de 97 anos assiste televisão boa parte do tempo. Não faz mais nada. Sentada numa cama, sem encostar em nada, admira o que surge na tela, seja um show de Silvio Rodriguez (espécie de Roberto Carlos cubano), ou uma manifestação política, onde centenas de homens e mulheres agitam a bandeira azul, vermelha e branca. Durante a movimentação de cada “personagem”, o nome e a idade deles aparecem na tela – única informação ao público. Há a curiosa estátua do Beatle John Lennon na praça principal de Havana, com formato semelhante à de Carlos Drummond de Andrade que existe no Rio de Janeiro. A chuva vem, vai, volta e ela fica lá, com os habitantes olhando para ela como se quisessem desabafar com ele. Francisquito caminha para a escola. Lá, aprende os números, canta, sorri mais, brinca. Depois, come, banha-se. Quando vai dormir, a imagem da emoção transparece, reflexo idêntico do poema “O Guardador de Rebanhos”, parte oito, de Fernando Pessoa: “Depois ele adormece e eu deito-o / Levo-o ao colo para dentro de casa / (...) Ele dorme dentro da minha alma / E às vezes acorda a noite / E brinca com meus sonhos”. Sem sonhos, sem sentimentos.

Sem perspectivas. À medida que o filme avança, mais a gente se sente incapaz, impotente e, de uma vez por todas, inútil. Independentemente de se concordar ou não com regime ditatorial de Fidel Castro (eu não concordo, por exemplo), é de se espantar que aquele país banque fitas como esta. É para ser aplaudido de pé. “Uma ditadura política, mas com democracia social”, disse o filósofo Emir Sader. “Diferente do Brasil, onde há democracia política, mas uma brutal ditadura social”, completa. Talvez ele tenha razão. Mas a matança que acontece naquele lugar destoa de tudo o que possa ter de bom. Instalado em Cuba através de um golpe no primeiro dia de 1959, Castro permanece há 46 anos no poder. Hoje, aos 78 de idade, tem problemas de saúde, não agravados pela incrível queda que teve ano passado, ao tropeçar quando descia uma escada. Ernesto Che Guevara, morto na Bolívia depois de oito anos de regime castrista, ainda ocupa parte das adorações dos cubanos (divididas com John Lennon). “Suite Habana”, claro, exibe apenas o lado negativo do país. Os males impostos por Fidel se detalham: racionamento de água (banhos com canecas), comida pouca, carros fora de linha. Sem alegria, sem nenhuma satisfação.

Sem palavras. No término do filme, nos créditos, os “personagens” voltam a cena. Desta vez, ao lado deles, surge escrita uma breve biografia e o sonho de cada um. Sabemos, então, que o menino Francisquito é órfão de mãe desde os três anos e seu maior sonho é poder voar. O das demais pessoas são os mais rasos possíveis: ter uma roupa nova por dia, ser ator, transformar-se num bailarino etc. Ah, esqueci de Amanda, avó de Francisquito. Personificação da bondade. O sonho: não deixar faltar nada, nunca, ao neto querido; e que ele não seja um peso para os outros. As lágrimas rolam. E, para a moça que vende amendoins na rua, uma frase desconcertante: “Já não tem mais sonhos”. A fita acaba aí. O filme recebeu vários prêmios, entre eles dois kikitos de ouro e venceu 12 categoria do Festival de Havana. Vi “Suite Habana” durante as aulas que tenho aos sábados na PUC-SP, onde curso a pós-graduação. Emir Sader é o professor. Após o encerramento do longa-metragem (o sétimo do diretor Fernando Pérez, de 60 anos), a sala inteira silenciou. Uma das alunas chorou. Foi dado um intervalo para todos “respirarem”. Nunca estive em Cuba. Emir se exilou lá, entre 1977 e 1983. Sentiu aquilo a sua volta. A população sem futuro, sem tudo.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 03/07/2009
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