Maturidade (publicado originalmente em 25/5/2005)

Já expressei aqui minha adoração por filmes musicais algumas vezes. Escrevi sobre fitas para lá de consagradas e também atores, diretores e atrizes de igual refinamento dançante. Mas faltou talvez aquele personagem cuja verve de bailarino sobressaiu toda e qualquer forma de atuar: Fred Astaire. Desde sete anos ele sacoleja o corpo. Começou ao lado da irmã, Adele. Mas, com o casamento dela, o curso mudou de lado. Fez testes para ator. Um deles, de 1923 (ele nasceu 24 anos antes) trazia uma descrição sua que depois da fama no cinema se tornou famosa: “Não representa. Ligeiramente calvo. Dança um pouco”. Impressionante como quem redigiu isso acertou não na mosca, mas longe dela. Astaire consolidou a dança como uma forma de interpretação, somada a atuação. Nele, bailar e falar se confundem porque, no fim, dá no mesmo. Suavemente, construiu parcerias magníficas com belas como Ginger Rogers, Rita Hayworth, Judy Garland, Eleonor Powell, Cyd Charisse e Leslie Caron. Os movimentos sutis e naturais, colados a maneira simples, mas elegante, de pronunciar cada sílaba fizeram dele mito antes dos 50 anos. Sua ficha de fitas incluem 44 trabalhos, o primeiro deles em 1933 (o último foi em 1981).

Porém, passava a linha dos musicais e ia além. Fazia papéis dramáticos. O mais recente deles, “O Inferno na Torre” (1974) lhe rendeu sua única indicação ao Oscar, de ator coadjuvante, já aos 75 anos de idade. Antes, em 49, a Academia havia dado a ele a estatueta especial por contribuir à sétima arte. Era pouco. Sete anos antes de morrer (em junho de 1987), o Instituto Americano de Filmes deu a Fred o prêmio Life Achievement Award, um dos mais importantes do cinema. Continuava pouco. Seus passos delicados do sapateado valiam mais, se é que tinham valor real. Os cabelos sempre bem ajeitados, o corpo magro, a risada contida... Tudo somava ao talento para dançar. De terno e gravata, ia para o molejo. Não era fanático em filmar. Sua média, de 44 longas em 53 anos de carreira, é uma amostra disso. Dá menos de uma película a cada 12 meses. Fred Astaire teve intervalos entre filmes. O maior aconteceu entre 1962 e 1968. Apareceu também na televisão, quando o auge já não era mais seu amigo, nas décadas de 1960, 1970 e começo da de 1980. O resgate em “O Inferno na Torre” foi providencial. A lenda viva voltava a ser alvo de aplausos acalorados. Depois do reconhecimento aos 50 anos, tinha outro aos 75.

Particularmente em “A Roda da Fortuna” (1953), Astaire está excepcional. Encarna o ator de musicais Tony Hunter. Ele está decadente. Tem mais de meio século de vida e faz uma viagem em busca de reabilitar a trajetória. Lá encontra o casal Lester e Lilly Marton, amigos dele. A dupla tem uma proposta de trabalho: peça teatral “A Roda da Fortuna”, dirigida pelo entusiasmadíssimo Jeffrey Cordova. O diretor é atabalhoado. Da cabeça dele saem idéias absurdas, inimagináveis, como a que ele tem para o espetáculo de Hunter: uma mistura de “Fausto”, de Goethe, com números musicais atordoados. Para contracenar com Tony, Cordova traz Gabrielle Gerard, musa dos cânticos simples, mas maravilhosos. O ator a acha muito alta para ele e aí eles se desentendem. Brigam. Insultam-se em cenas ímpares. Cyd Charisse fez Gerard. Com ela, Fred Astaire desenvolveu sua mais célebre e estonteante parceria. Cyd, 22 anos mais nova que ele, está graciosa no filme. E, claro, a loucura de Jeffrey dá em nada: a peça é um fracasso. Tony, então, decide tomar as rédeas da produção. O sol volta a brilhar. O espetáculo engrena e tudo se sai bem. A roda não pára de girar. Fazem excursões e a turnê vira infinita.

“A Roda da Fortuna” foi dirigido por Vicente Minnelli e concorreu ao Oscar de roteiro original e não ganhou. Cyd, que também atuou no épico “Cantando na Chuva” (1952), não teve igual futuro. Com o declínio dos musicais, sua biografia profissional ficou arranhada com participações em outras produções, pois era uma atriz limitada. As fitas cantadas viraram tema de chacotas nos anos 1960, 1970, 1980 e 1990. Também com Fred Astaire isso ocorreu. Novamente volto a me referir à fita de 1974. Se não fosse “O Inferno na Torre”, provavelmente ele estaria encostado no obscurantismo da renegação. Ficaria perdido lá nos longínquos 1953, 1935, 1946... E, ao falecer, somente relembrariam cenas dele etc. A indicação ao Oscar de 31 anos atrás veio bem a calhar. Muito bem, aliás. Astaire vestiu-se com sua melhor roupa de rigor e sentou-se na cadeira para que todos escutassem seu nome. A derrota para Robert de Niro, de “O Poderoso Chefão II” (1974), importou nada. O bailarino saiu de lá de cabeça erguida. Sem dar seus passos de dança, evidente. Havia deixado as sapatilhas guardadas. Para a eternidade. Fred Astaire está catalogado na pasta dos mitos / lendas do cinema. Ponto final. A maturidade prevalece.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 02/07/2009
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