Menina dos olhos (publicado originalmente em 20/4/2005)

Eu não conheci Tancredo Neves. Nunca o vi ao vivo fazendo um discurso, ou dando entrevistas para telejornais. Tampouco li artigos escritos por ele quando o Brasil ainda respirava no gólgota dos países sob regime ditatorial. Apenas ouvi relatos antigos, li reportagens históricas e assisti a imagens antigas deste homem. E fiquei com vontade de tê-lo visto refletir sobre assuntos do cotidiano. Desejei controlar a marcha de minha vida e colocar uma ré nela. Estaria com meus 23 anos, mas em 1984. Observaria um Tancredo já ancião, com seus pouquíssimos cabelos encanecidos, mas batalhador e animado como aquele jovem que está prestes a conquistar a garota dos sonhos. Esta “garota” é nada menos que a democracia, tão difícil de conquistar, que qualquer sacrifício de mouro seria meramente nulo. Esse “primeiro beijo” demorou mais de duas décadas para acontecer. Derrapou quando João Goulart foi à China e abandonou o Brasil aos devaneios dos militares. Tancredo, à época dirigente importante da terra do pão-de-queijo, tentou, em vão, junto com outros líderes, impedir que aquele rapaz durão, déspota, chamado “ditadura”, subisse a rampa do Palácio do Planalto. O ano: 1964.

Amanhã, 21 de abril de 2005, completará 20 anos da morte do presidente brasileiro eleito pelo voto indireto e derrotado pela saúde abalada desde antes. O mineiro Tancredo de Almeida Neves não tomou posse. Não saboreou o gosto, a sensação de seus cinco antecessores de farda (Castelo Branco, Médici, Costa e Silva, Geisel e Figueiredo) ao caminharem rumo ao poder. Ele subiu a rampa, sim, mas carregado dentro de um caixão. O país aguardava recepção diferente. Nos comícios das “Diretas Já”, a festa das milhões de pessoas amontoadas para escutar as lendas vivas da política nacional (caso de Ulysses Guimarães, por exemplo) clamava, berrava, gritava a aspiração legítima de qualquer povo de escolher seus governantes. Os “delírios” ensurdeceram quando a emenda de Dante de Oliveira foi penosamente rejeitada no Congresso, em 25 de abril de 1984. Os sorrisos de orelha a orelha viraram frustração sem tamanho. A pergunta, indignada, perseguia a dúvida: os militares ficarão debaixo de nossas asas até quando? Mas Figueiredo, talvez o mais sensato e ao mesmo tempo mais mal educado dos presidentes-ditadores, queria repassar seu cargo a um civil. A ditadura ruía, sem alardes, calma.

O MDB (Movimento Democrático Brasileiro, hoje PMDB, partido de oposição à ditadura e sua Arena) precisava de um candidato. Olharam ao redor. Ulysses bancava o pleito direto, pois a massa estava ao lado dele, mas para a eleição indireta, não serviria, pois era turrão demais e abrigava vários inimigos. Tancredo, seu fiel oposto. Não havia inimicícias com ele. Como todo bom descendente do Estado de Aleijadinho, sabia como ninguém ajeitar as pessoas à sua volta. Dava-se bem com todos. Enfim, o político do tal consenso. O vice, José Sarney, veio trazido da base rebelde da Arena. Assim os votos seriam distribuídos de forma amigável de ambas as agremiações. Porém, o corpo do futuro comandante do Brasil avisava a sua fraqueza. Contava 74 anos e queixava de dores. Mas ele não era uma pessoa especiosa. Transmitia seus sentimentos. O Brasil bradava o sonho da nação esperançosa por finais felizes. A abertura dos olhos começava. Paulo Maluf, candidato do regime direitista, nem aguardava resultado a seu favor. Em 15 de janeiro de 1985, o filho mais querido de São João del Rei esmagou o político paulista por 480 votos a 180. Iniciaram-se as orações pelo adoentado Tancredo.

A interrogação sobre se Figueiredo passaria a faixa presidencial a Sarney, devido a ausência do presidente enfermo, pairava no ar. Tancredo sabia disso e por este motivo se esquivou de ser operado o quanto pôde. Tinha receio de que os militares impedissem a posse do maranhense José, por obra do acaso, um integrante do partido militar, a Arena (agora revirado no PDS) e PMDB. A 14 de março de 1985, numa travessura do destino malvado, pouco menos de 24 horas antes da posse, de receber a faixa tão chorada por todos os brasileiros, a manobra do carro presidencial seguiu para outro rumo: o do hospital. Tancredo fora internado. Guardava problemas no estômago. Eles muito simples. Mas por serem tratados tarde, o caso se agravou. A angústia durou pouco mais de 30 dias. TV, os jornais e as revistas cobriam o desenrolar da história, a esposa implorava para o Brasil “continuar rezando” pelo marido moribundo. Em vão. No Dia de Tiradentes, ele morreu. Ventos democráticos ablegavam o sistema autoritário. A democracia vigorava forte, renascida, enquanto Tancredo era sepultado em sua cidade natal. 20 anos depois, a herança permanece intacta. É a bela “garota” de quem tanto gostava.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 25/06/2009
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