Bravura delicada (publicado originalmente em 13/4/2005)

Chamado de “Dia D” (tratava-se do singelo nome oficial do primeiro dia de qualquer operação militar e hoje utilizado como sinônimo dessa invasão), a data de seis de junho de 1944 entrou para a história através do ataque dos norte-americanos à base francesa da Normandia, ocupada totalmente por nazistas na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Planejado cerca de 24 meses antes, as tropas aliadas tiveram de esperar algum olhar de soslaio dos amigos do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) para entrarem em ação. O último adiamento aconteceu a cinco de junho, quando a maior tempestade desde 1919 desabou sobre as terras francesas. Pouco antes do “cumprimento do dever”, os mais de 150 mil soldados ouviram do general Dwight Eisenhower que estavam prestes a realizar uma grande cruzada. Esgrimiram na maior operação aeronaval de todos os tempos. Envolveu dois mil navios, quatro mil embarcações e 11 mil aviões. Começou com a chuva de pára-quedistas antes do amanhecer. Navios caça-minas limpavam as águas terrivelmente geladas. Aeronaves bombardeiras castigavam posições inimigas. No meio disso, Hollywood, 54 anos depois, inventou o soldado Ryan. Precisava resgatá-lo.

“O Resgate do Soldado Ryan” (1998) moveu milhares de figurantes, milhões de espectadores e bilhões de dólares. A meia hora inicial do filme não se ouvem os personagens. Apenas tiros, gritos de dor. Vemos olhares de desespero e angústia e sangue. Muito sangue. É o desembarque das tropas dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Canadá na França dominada. Braços arrancados, cortes profundos, testas ensangüentadas, pernas decepadas. Este é o cenário mostrado pelo diretor Steven Spielberg a fim de início de conversa. Liderados pelo general Bernard Montgomery, os combatentes de imediato recapturam pedaços de solo francês. Alemães são mortos às centenas. O capitão Jason Miller (Tom Hanks) protege seu grupo jovem. No dia seguinte à batalha, o percurso dele na guerra é modificado. Miller recebe a ingrata missão de achar, naquele território infinito, o soldado Ryan. Ao encontrá-lo, deverá levá-lo de volta para casa. Antes, comunicar-lhe que havia perdido os três irmãos mais velhos, os quais também estavam na Normandia. Tarefa indigesta. Como procurar uma pessoa daquele jeito, sem imaginar nada e dar aquela notícia fúnebre? A agulha do palheiro tinha nome. Mas não rosto.

Aceita a “proposta”, o capitão decide unir-se a sete gladiadores para perseguir pistas em busca de Ryan. Não é fácil. Além de apressar a busca pelo garoto órfão de irmãos, os oito homens têm de despachar os inimigos germânicos. Aventura periclitante. Entre eles está o tradutor Upham, para o caso de entender nazistas ou fascistas. Upham é a imagem do fracote, medroso e impotente. Magro, baixo e inofensivo, representa pouco. Enquanto isso, Miller vê respingos de sangue caírem no rosto, na linguagem de câmera onde Spielberg se supera. Desgastado, acabado psicologicamente, abalado e traumatizado, o personagem de Hanks se definha na mente minuto a minuto. Quer voltar para esposa e viver em paz. Essa sobrevivência esdrúxula é exposta em carne viva, à medida que as baixas de sua tropa ocorrem. Os dias passam e a desesperança teima em cutucar. A caótica visão da guerra apavora. Na seqüência mais impressionante de batalhas depois dos 30 minutos do começo da fita, a equipe de americanos é avisada que dois tanques alemães estão a caminho do local onde Jason Miller e seus comandados descansa. É como se uma dupla de gigantes Golias se aproximasse. Os EUA são David.

A lâmpada acendeu em Steven Spielberg para rodar este roteiro especial e particularmente por causa de seu pai. O Spielberg pracinha lutou no front Pacífico de Burma. E vivia narrando episódios inesquecíveis para o Steven garoto. Na adolescência, o futuro diretor arquitetava seus filminhos. A areia era utilizada para fazer as vezes da pólvora, proibida pelo pai. “O Resgate do Soldado Ryan” é uma homenagem delicada de filho para pai. Jason Miller, no cérebro talentoso de Steven, é, claro, o pai dele. Típico herói americano, vestido com as cores azul, branca e vermelha da bandeira nacional dos Estados Unidos. O “faça por merecer”, dito no fim da película, significa algo mais que simples conselho, mas sim o ensinamento, as mãos dadas de confiança, a amizade pura e genuína. Não à toa, o drama de guerra concorreu a 11 Oscars. Ganhou seis: direção (ah, quanta novidade), edição, efeitos sonoros, som e fotografia. Perdeu nos quesitos filme, ator (Tom Hanks), direção de arte, maquiagem, roteiro adaptado e trilha sonora. Foi o primeiro dos três filmes da parceria entre Hanks-Spielberg (os demais foram “Prenda-me se for Capaz”, de 2002, e o chatíssimo “O Terminal”, do ano passado).

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 25/06/2009
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