Muito prazer, meu nome é otário (publicado originalmente em 16/3/2005)

Alex é daqueles adolescentes “rebeldes sem causa”. Filho de pais remediados, faz malabarismo com a tragédia alheia nas horas vagas. Junto com três fixos comparsas, vadia nos becos maltrapilhos. Maltrata mendigos, invade casas, estupra mulheres, espanca pessoas. Gosta de excentricidades. Não vai às aulas devido à boemia violenta da madrugada anterior. Usa trajes ridículos: narizes grandes, calças com enchimentos, chapéu estilo “Carlitos”. É o líder do grupo dos “drugues”. O quarteto usa linguagens inovadoras. Termos como “videar” (olhar), “glazes” (olhos) e “druguinhos” (parceiros) são comuns. Tudo caminha em paz, quando os três subordinados de Alex resolvem tirar o cartaz do comandante. Numa das aventuras sádicas, o mirmidão é pego pela polícia, enquanto os demais fogem ilesos. Alex sofre na cadeia tudo aquilo praticado por ele quando estava nas ruas: lhe dão cusparadas, socos, pontapés. A senda de bom moço, então, o consome. Especialmente quando descobre um novo método do governo dos Estados Unidos para “regenerar” seres humanos através de alta tecnologia. Ele é o escolhido para experimentar. Há o sofrimento, a sensação de ser esmagado, escalpelado vivo.

E não é que dá certo? Antes um estorvo para a sociedade, o rapaz agora parece uma folha em branco pronta para ser rabiscada. Seus gostos culturais, apurados, como as músicas “9ª Sinfonia”, de Ludwig van Beethoven, e “Cantando na Chuva”, clássico do filme homônimo de 1952, permanecem nele, mas com ressalvas. Durante o método científico, Alex vê linchamentos, estupros, cenas reais e deploráveis, enquanto um dos médicos lhe aplica um colírio. O adolescente tem vontade de vomitar. “Dêem-me alguma coisa que me faça vomitar para dentro”, implora, amarrado até às vísceras e com objetos que o impedem de fechar os “glazes”. O auge é atingido quando a composição de Beethoven é anexada a trechos de imagens do nazismo. Aí ele não suporta mais. E está curado da pústula. Pode se virar novamente à sociedade. E começam os problemas. Ao voltar ao lar, há um homem que ocupa seu posto de filho. Reencontra-se com o mendigo. Seus ex-amigos delinqüentes agora são policiais. Eles o achincalham. Impotente em lidar com as situações, o jovem morno se desespera. Num outro reencontro com uma de suas vítimas que sabe do tratamento, Alex tenta o suicídio. Mas não morre.

“Laranja Mecânica” (1971) é isso. Um filme complexo e delicioso. Protagonizado por Malcolm McDowell, revolucionou o cinema. Stanley Kubrick dirigiu, adaptando do livro escrito por Anthony Burgess. McDowell dá espetáculo com seus sorrisos maledicentes e cílios postiços colocados apenas no olho direito. O personagem criava uma cobra. Isto não está no livro, mas Stanley decidiu utilizar o bicho quando soube do pavor que o ator principal sentia por ele. A linguagem criativa, não entendida, é a junção de palavras em inglês, russo e gírias. É excepcional. Com orçamento de dois milhões de dólares, maneja com perspicácia os trâmites da política, seus bastidores enojados. A fita foi retirada de cartaz do Reino Unido a pedido de Stanley Kubrick, que arrancava os poucos cabelos com críticas avassaladoras recebidas a contragosto. Lá, disse ele, a trama seria exibida apenas após a morte dele, ocorrida em 1999, aos 70 anos. A Academia indicou “Laranja Mecânica” a quatro categorias: filme, edição, diretor e edição. Perdeu em todas. Malcolm foi apontado somente no Globo de Ouro, como ator de drama, mas teve o mesmo destino dos quesitos do Oscar. O intérprete de Alex tinha 27 anos.

Mas porquê o título “Laranja Mecânica”? Existem várias suposições. Pode ser aquela na qual Alex seria tão trouxa no pós-tratamento que sua incapacidade de reação e seu comportamento bobo se compararia a uma laranja amarga, sem graça. Tem várias outras propostas. O filme é arrebatador e chocante. A visão futurista de Burgess, mais a mão habilidosa da direção de Kubrick, fizeram deste longa um marco da sétima arte. A trajetória do punk sem moral e sua transformação até ser o cidadão íntegro, mas desprotegido, é categórica. A arrogância de Alex para com todos, até com a cobra Basil, é de uma fineza inacreditável. Ele imprime seu ritmo próprio ao filme. Imagens impressionantes. A música ao mesmo tempo simples, clássica, atrelada a cenas devastadoras, fez de “Laranja Mecânica” uma película cult. Não é qualquer pessoa que o entende. Trata-se de uma fita raríssima. Daquelas que rompem barreiras, aniquilam tabus e chutam conceitos. Une violência com Beethoven, sadismo com Gene Kelly, política com manipulação escancarada. O jovem Alex volta a ser aquele destruidor de calmas, mas à custa de muito trabalho. É um boneco manobrado por diversos e paleiros ventríloquos.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 22/06/2009
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