Os esgotos do pós-guerra (publicado originalmente em 12/3/2005)
Depois de maravilhar o planeta com “Cidadão Kane” (1941), Orson Welles, o homem múltiplo do cinema (exerceu as funções de ator, diretor, escritor, figurinista, entre outros), se embrenhou em papéis e histórias como “Macbeth” (1948), de William Shakespeare, no qual fez o personagem-título. “O Terceiro Homem”, do ano seguinte, é talvez seu melhor trabalho desde então. Ousado, avançado para a época e bem estruturado, o longa dirigido por Carol Reed abre as cortinas para o ambiente do pós-Segunda Guerra em Viena, Áustria. Os cenários roubam atenção: ruínas por toda parte, sordidez nos modos de vida e malandragens para sobreviver. E os esgotos. Bem iluminados na fita, explanam medos e desconfianças. Nessa cidade destroçada, Holly Martins, um escritor de talento fraco, chega para reencontrar o amigo Harry Lime, que lhe prometeu emprego. Mal põe os pés na metrópole, fica sabendo da morte do parceiro, atropelado por um caminhão quando atravessava a rua em frente a um hotel. Vai ao enterro de Lime. No local, suspeita da causa mortis do companheiro. Quer investigar.
As primeiras pistas são dadas pelo porteiro do tal hotel. Da janela de um dos quartos, foi única testemunha. Revelações não batem. Estavam lá dois ou três homens que socorreram Harry? E quem seria este terceiro sujeito? O médico, conhecido do morto, chegou lá no momento do acidente ou só depois? A pulga pousa atrás da orelha de Holly. O atropelamento poderia não ser acidental, mas sim proposital. Quando averigua a trajetória de Harry, descobre que ele não era o probo que imaginara. No mercado negro, vendia penicilina, as adulterava acrescentando água, fator mortal para doentes, entre eles crianças e velhos. O amor fraternal de antes se transforma em ódio. Agora, o motivo da morte está claro: vingança. Ou não está? As pessoas que estavam na rua são descobertas: o romeno Popescu e o barão Kurtz. Menos o terceiro. Não é o doutor Winkel (insistente na pronúncia vínkel e não uínkel). Nas entranhas dos buracos sujos do pós-guerra, Holly cava os tráficos, as corrupções e as falcatruas do submundo europeu. Quando tudo parece esclarecido, há a reviravolta desconcertante.
Dividida depois de 1945, a Áustria ficou dominada por quatro descendências: francesa, inglesa, francesa e norte-americana. Por isso, sotaques se espalham e o protagonista pena para compreender as frases do porteiro francês, por exemplo. Além do idioma, o ponto forte do filme está nas sombras projetadas pelo jogo de câmeras, que as multiplicam de tamanho, dando a impressão de gigantismo. O interior dos esgotos também, com o som das águas e as passagens idênticas a labirintos, entradas e saídas infinitas. A seqüência final, da perseguição a Lime, é um marco, bem como a última cena. Os atores principais, Welles (Harry) e Joseph Cotten (Holly), deram ritmo alucinante aos derradeiros minutos. No passeio de ambos na roda-gigante (é... Harry Lime está vivo), o amigo forasteiro firma seu repúdio ao contrabandista de penicilina, crime este que Holly custa a acreditar que Lime tivesse a coragem de cometer. Esta mesma percepção tem Anna Schmidt, namorada do bandido que deposita nele a forma de herói límpido, etéreo. Não restam dúvidas: quando os depoimentos começam, prisões ocorrem e Anna resiste em abandonar o amado. Para protegê-lo, corre riscos. A caçada, então, inicia.
Cotten e Welles trabalharam juntos em “Cidadão Kane”. O intérprete de Holly, aliás, participou dos três primeiros filmes de Orson: além da biografia do magnata Charles Kane, esteve também em “Soberba” (1942) e “Jornada de Pavor” (1943). Após fazerem “O Terceiro Homem”, separaram-se durante quase três anos, até voltarem em “Otelo” (1952), “A Marca da Maldade” (1958) e “Verdades e Mentiras de Orson Welles”, este último muito tempo depois, em 1974. Na terceira idade, ocupou-se em filmes de baixo custo, e consequentemente, fracos. Welles era a contradição em pessoa quando se tratava de meios de comunicação. Amedrontou os EUA em 1938 ao “informar” sobre a invasão de extraterrestres no solo americano. Seu currículo é marcado pela criatividade. Mas nada comparado ao Lime e a frase lapidar no encontro no parque de diversões: “Você sabe o que disse o camarada (leia-se Mussolini): na Itália, durante os trinta anos dos Borgias, eles tiveram guerras, terror, assassinatos e carnificinas, mas produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. A Suíça era o reino do amor – foram quinhentos anos de paz e democracia. E o que eles criaram? O relógio cuco”.