O desaparecimento das paisagens (publicado originalmente em 5/3/2005)
Um amor construído plenamente vai à ruína quando tiram dele peças mais que preciosas. Então vem arrependimentos, vontades impossíveis, perdões irrecuperáveis, distâncias irreparáveis. A morte é a responsável por estas manchas desoladoras em “Amor Além da Vida” (1998). Acostumar-se com certas novidades do outro lado do céu torna-se enfadonho, inacreditável e desafiador. Assim, quando o médico pediatra Chris Nielsen morre em acidente de carro e é levado à suposta “morada eterna”, não crê no próprio falecimento. Robin Williams o interpreta sobriamente, talvez melhor até se for comparado ao personagem de “Gênio Indomável” (1997), pelo qual ganhou Oscar de coadjuvante. O doutor encarnado por ele está num dilema: acreditar ou não nas pessoas que o guiam no paraíso? Um deles é Albert (Cuba Gooding Jr.), na verdade, seu amigo da medicina, único de quem Chris escutava conselho. Durante a jornada inicial, o recém defunto quer descobrir como lidar com a nova realidade. Suas visões são distorcidas (enxerga o parceiro embaçado no começo), como seu comportamento.
Para Annie, esposa de Chris, a tragédia é acumulada. Pouco antes, ainda com seu marido, ela perdeu os dois filhos em outro acidente automobilístico. As crianças, um casal de pré-adolescentes, agora navegam no mesmo lugar que o pai. A dor da artista plástica (Annabella Sciorra, de “A Mão que Balança o Berço” – 1992) não cicatriza fácil. Está depressiva, isolada, desinteressada da vida. A solução encontrada por ela é o suicídio, tentado por ela diversas vezes antes. Enquanto Chris desfruta das paisagens coloridas e pacíficas de “lá”, Annie tem destino completamente diferente: o inferno, o cinza escuro marcado por sombras e gritos. Então, o amor sem limites que os uniu durante a vida na Terra, provoca reação corajosa do médico (que era descrente quando vivo), o qual decide ir resgatar a esposa. É uma missão quase desastrada. Junto com um misterioso caçador de almas (o ator Max Von Sydow, o padre Merrin de “O Exorcista” – 1973), percorre caminhos dolorosos até poder reencontrar a amada. Esse cara a cara não é garantido pelo caçador, mas a paixão vale mais que tudo para Chris.
“Amor Além da Vida” cheira, em alguns momentos, a Akira Kurosawa nas filmagens de seus “Sonhos” (1994), obra sublime e poética do diretor japonês. Na fita de 1998, telas de pintura fazem parte da imaginação do doutor, como se ele estivesse dormindo. As recordações ocupam espaços na mente dele, sobretudo em relação ao filho mais velho. O filme mexe em vespeiros religiosos, como a punição aos suicidas e a casa dos mortos. Isso é relevante. Há poesia ali também. São passagens lindas, onde o sonho se transforma em realidade, sem pieguismos. Seja no andar dos anjos; nos vôos amparados por fios invisíveis, suaves; na tinta que, ao contrário do imaginário, se borra e rasteja da maneira mais serena, até que a desconfiança de Chris vá embora. Tudo parece ser ilusão, enganação. Os olhos não refletem mais o verdadeiro. É essa teoria que Albert quer por na cabeça do pediatra. Ele comanda seu mundo. Desenha-o da forma que quiser. As pessoas não são quem julgam ser. A suicida repousa num canto sórdido, no entanto, onde a mentira prevalece. O envolvimento falso também.
Os efeitos visuais ganharam o Oscar mais pela simplicidade que pela exatidão. Robin Williams se supera neste trabalho. Faz do seu estado-cadáver um trunfo para interpretar solto, sem se prender a estereótipos. Tal prodigioso feito ele repete em “Insônia” (2002), no qual encarna um assassino frio, ao lado de Dustin Hoffman, o detetive com problemas para dormir. Em “Amor Além da Vida” não há como dormir, nem sofrer com os perigos de se viver. Só há, sim, como se redimir das coisas não feitas (ou esperar que isso realmente ocorra). O mundo particular construído por Chris advém de sua esposa, coordenadora de uma galeria de arte. Não é uma façanha este projeto do diretor Vicent Ward. A história empolga pouco. A emoção deixa a desejar. Se a intenção era das lágrimas desembestarem a torto e a direito, houve aí um tropeção. Com exceção do cenário excepcional, dos efeitos especiais e de Robin Williams, “Amor Além da Vida” possui um “quê” de “Ghost – Do Outro Lado da Vida” (1990) mal acabado, além do já citado longa de Kurosawa. Lassidão e fadiga abatidas e esgotadas.
Quem o vir, terá a “garantia” de pelo menos conhecer o reino eterno. Iremos para o céu.