Um pequeno exagero (publicado originalmente em 16/2/2005)
Martin Scorsese quebrantou convenções com “O Aviador”. Com quase três horas de duração, o filme é um espetáculo do início ao fim. E sustentar o ritmo nesses minutos todos é difícil, tarefa para poucos. Contar aos espectadores a vida de Howard Hughes, o empresário obcecado pela sétima arte e aviação, consumiu vários e vários milhões de dólares, como qualquer superprodução norte-americana que aspira se tornar referência. Seja por exibir os bastidores do cinema dos anos 1930 e 1940, ou por expor à sociedade ultraconservadora dos Estados Unidos a corrupção de senadores pela aprovação de um projeto de monopólio aéreo, nessa mesma época (do Partido Republicano, cutucando o já tão mal falado e espetado George W. Bush), a fita contém todos os requisitos básicos para ganhar o Oscar de melhor filme, daqui a 11 dias: cenas trabalhadas e trabalhosas, atores alentados em desempenhar seus papéis e um diretor capacitado para equilibrar tudo isso. Scorsese, que jamais levou para casa a mini-estátua dourada, entrega à Academia seu filho mais novo e talvez o mais recitativo de todos eles.
Hughes (Leonardo DiCaprio, enfim honrando as calças que veste) herdou fortuna gigante. Com ela, transformou em realidade seus sonhos de garoto. Unir aviões e cinema. “O Aviador” começa em 1927 nos sets de “Os Anjos do Inferno”, que só ficaria pronto 36 meses depois, devido às inúmeras dívidas contraídas por ele, responsável pela produção de 26 longas-metragens. Sua obstinação para que tudo saísse conforme o combinado, a agitação tensa e a rapidez de raciocínio levaram-no a fama rapidamente. Paralelamente aos rolos cinematográficos, Howard se empenhava em montar, como um quebra-cabeças, aeroplanos para a empresa dele vender na Segunda Guerra Mundial ao governo dos EUA. Os testes destas máquinas voadoras são emocionantes. O próprio empresário fazia questão de pilotar suas belezinhas. Mas não era tão fácil assim. Juan Trippe (Alec Baldwin), outro businessman no ramo igual ao de Hughes, tem amizade com senadores influentes e pretende aprovar, com devido respaldo deles, um projeto onde o monopólio (claro, a favor da sua instituição) possa ser soberano.
Nessas rixas e parlendas, há o envolvimento de H. H. com estrelas de Hollywood. E é aí que a película ganha força. Katharine Hepburn e Ava Gardner são divinamente representadas por Cate Blanchett e Kate Beckinsale, respectivamente. A primeira, ruiva de olhos azuis, vive com ele dias de paixão e amor à toda prova. Casam-se. O tempo, porém, joga contra quando ambos se ignoram pelas exaustivas tarefas profissionais. Isto contribuiu para que ela caísse nos braços do ator Spencer Tracy em 1942 (eles ficariam juntos até a morte dele, em 1967 – o relacionamento de 25 anos se ausentou das páginas dos jornais por causa de um acordo com a imprensa). A sinceridade gelada de Katharine ao revelar o fato ao ainda marido Howard impressiona. Já Ava foi mais severa com o empresário. E a dupla jamais teve alguma coisa. Só “ficaram”. Na época raspando os 20 anos de idade, ela não queria consumar seus sentimentos por ele. Tornaram-se amigos. Muito amigos. Blanchett e Alan Alda (o tal senador corrupto) concorrem ao Oscar de coadjuvantes. DiCaprio mereceu a indicação para ator.
Em 1946, o revés trágico. Ao avaliar pessoalmente um de seus aviões projetados, sofreu grave acidente e esteve à beira da morte. Ficou longo tempo no hospital. Ao sair, não representava mais o personagem de playboy, mas sim de compulsivo recluso. Com bigode (para esconder grande cicatriz causada pelo tombo) e bengala, ficou meses dentro de um estúdio onde se viam seus filmes. A mania de limpeza, as frases repetidas dezenas de vezes quando demonstrava ansiedade ou nervosismo, o deixaram maluco. A disputa com Trippe aumentou quando Hughes não concordou ser subornado por Ralph Owen Brewster (o político). Convocado para depor na casa dos senadores, H. H. virou a mesa e derrubou Owen. A fita de Martin Scorsese acaba com Howard voando com sua mais nova nave, em 1947. Mas a vida dele não. No ano seguinte, comprou a RKO. 70 meses depois, levou-a à falência. Subiu ao altar de novo, desta vez com Jean Peters. Na década de 1960, mudou-se para uma cobertura em Las Vegas. Praticamente não saia de casa. Nem Jean o via direito. Morreu aos 71 anos, em 1976.
“O Aviador” concorre em 11 categorias no Oscar. Além das quatro mencionadas, está também entre os mais votados em roteiro original, fotografia, figurino, edição, direção de arte, som e, óbvio, diretor. O nova-iorquino Scorsese, 62 anos, adquiriu, assim, sua quinta indicação à estatueta. Esteve nas festas de 2002 (“Gangues de Nova Iorque”), 1990 (“Os Bons Companheiros”), 1988 (“A Última Tentação de Cristo”, polêmico por tratar do Jesus Cristo humano, comum e mortal, inclusive com sua esposa) e 1980 (“Touro Indomável”). Confiou no taco do protagonista de “Titanic” (1997) e obteve lucro. Leonardo ganhou o Globo de Ouro como ator e está debutando no Oscar como favorito. Nos apontamentos técnicos, a fotografia arrasa, o roteiro é bem articulado e a edição não deixa a desejar. Se repetir o feito de “O Senhor dos Anéis –O Retorno do Rei” (2004), também indicado a 11 quesitos e ganhador de todos, a película sobre o magnata mais esquisito da história empatará com “Titanic” e “Ben-Hur” (1959). É possível que aconteça. Seria “o” exagero. Um exagero pequeno, é verdade.