Passaporte para a imaginação (publicado originalmente em 12/2/2005)
Classificado para concorrer ao Oscar 2005 em sete categorias, “Em Busca da Terra do Nunca” (2004) talvez seja o azarão na corrida no quesito melhor filme. Dirigido pelo alemão Marc Forster (o mesmo de “A Última Ceia”, 2001, que deu a estatueta de atriz para Halle Berry), a fita é dominada pelo lúdico. É, nesse arrastão de cinebiografias, outra delas. A história do escritor James Matthew Barrie, criador do personagem Peter Pan, é tratada à base de regalias. Johnny Deep vive Barrie e dá a ele tons cômicos e emocionais no mesmo tom. O filme inicia com um terremoto: fracasso inevitável de mais uma peça do dramaturgo James. Sempre auxiliado por Charles Frohman (Dustin Hoffman), o paciente dono do teatro onde são encenadas estas escrituras, Barrie está entregue ao tédio. Não acha idéias para por no papel. Ainda por cima, Frohman lhe funga o cangote cobrando outra novela para preencher a lacuna deixada pela anterior sem sucesso. Quando vai à praça com sua bengala elegante, encontra quatro crianças correndo, ou melhor, três, pois uma delas é o introspectivo Peter Davies.
Peter (Freddie Highmore, que lembra Haley Joel Osment de “O Sexto Sentido”, 1998, pela sua interpretação fabulosa e esforçada) é quem mais ficou traumatizado pela morte do pai e se culpa por isso. A mãe (Kate Winslet, agora recorrente nas últimas três colunas), Sylvia Davies, tenta fazer com que ele se distraia, e James é o caminho para isso. Aos poucos, de visita em visita, o escritor começa a montar sua nova peça a partir das brincadeiras dele com as crianças. As cenas “retiradas” da cabeça de Barrie são os pontos altos da película. Os meninos voando, ou num barco de piratas monstruosos com água por todos os cantos, enfim, os sonhos dele são representados diretamente para o palco do teatro de Charles. A superprodução para a época (primeiros anos do século passado) surpreende os espectadores (prestem atenção nos 25 lugares reservados pelo dramaturgo) e é aplaudida por todos os presentes. O “grande” Peter é reconhecido e a “Terra do Nunca”, local no qual as crianças ficam para sempre crianças, também. Principalmente Sylvia é a mais curiosa. E é aí que acontece algo utópico.
Isso, óbvio, não contarei. Mas a dica é que a “Neverland” aparece, para deleite da platéia. J. M. Barrie, escocês nascido em 1860, influenciou mais gerações. “Em Busca da Terra do Nunca”, rodado nos Estados Unidos e Inglaterra, expõe todo o ambiente britânico dos sets de filmagem. A qualidade do figurino deu à fita também o apontamento a esta categoria na festa da Academia, que acontecerá dia 27. Além dessas duas (filme e figurino), o quarto filme de Forster concorre em cinco indicações: ator (Deep), roteiro adaptado, edição, direção de arte e trilha sonora. Não é favorito em nenhuma. A injustiça fica maior pela ausência de Highmore entre os coadjuvantes, pois o ator-mirim dá show de talento. Barrie, uma espécie de Monteiro Lobato europeu (guardadas as devidas proporções), morreu aos 77 anos em 1937. A atriz indiana Julie Christie encarna a mãe severa e antipática de Sylvia, que quer proteger sua família em frangalhos após a morte do genro. Seus quatro netos são apavorados pela megera e controlados por ela, assim como a pobre filha. A companhia de Barrie a desespera.
A má convivência com Mary Barrie, a partir do momento em que o futuro criador do garoto que se recusa a crescer é tragado pela família Davies, é ponto fraco da trama devido a atuação morna de Radha Mitchell. Na fita, sua fria interpretação contradiz com os decotes extravagantes que ela não cansa de exibir. Fora isso, os cenários naturais dão requintes cabalísticos ao longa-metragem. Nos Estados Unidos, onde estreou há mais dias, a película ocupa um honroso oitavo lugar no ranking dos mais vistos. A lista pode ser considerada das mais qualitativas, pois nela estão, nos mais assistidos, “Menina de Ouro”, de Clint Eastwood; “O Aviador”, de Martin Scorsese e “Perto Demais”. Existe, claro, as exceções, como terror trash de “Jogos Mortais” e a continuação da cinessérie “Harry Potter” com o cálice de fogo. “Em Busca da Terra do Nunca” possui minutos encantadores, e, como todo, é bom. Não para levantar a taça da Academia, mas para deixar “boas lembranças”. O adulto girando a manivela do tempo para voltar a ser criança, agregando a experiência à inocência crua dos pequenos.
“Em Busca da Terra do Nunca” é totalmente o contrário de “A Última Ceia”. O filme de quatro anos atrás, com Halle como protagonista, narra as desventuras de uma outra família, de carcereiros da prisão principal de pequena cidade. Halle é Letícia, esposa à espera do falecimento do marido, que está no corredor da morte. Após a execução, ela se vê mergulhada em dívidas e ameaçada de despejo. Ao lado do filho obeso Tyrrel, a moça não sabe o que fazer. Encontra então Hank, sem saber que ele era o carcereiro no dia do desaparecimento de seu ex-marido. Hank também tem uma tragédia nas costas e espera superá-la o mais rápido possível. Quando ambos de juntam nessa busca incessante por paz, acabam se apaixonando. As cenas tórridas de sexo da dupla impressiona. Berry e Billy Bob Thornton (Hank) se entrosaram bem e a atriz mostra a boa forma em que está. “A Última Ceia” foi o trabalho antecessor a “Em Busca da Terra do Nunca”. E Marc acerta nos dois. A pouca idade (quase 36 anos) demonstra seu exímio esmero em cada cena. Os profissionais cooperam e o resulta sai bom.