O inverso de trás para frente (publicado originalmente em 5/2/2005)

O roteiro de qualquer filme é a base principal para se organizar uma fita. Fazendo comparação barata, é como se fosse o chão das casas, ou os trilhos para os trens. Sem roteiro, a película não anda. Separei para a coluna de hoje quatro deles. Eles inovaram em todos os sentidos. Não só pela criatividade em inverter cenas e narrá-las de trás para frente, mas também pela ousadia dos seus respectivos diretores. “Orlando” (1992), dirigido e escrito por Sally Potter, conta a história do personagem-título, criado como se fosse homem, mas na verdade, descobre sorrateiramente ser a mulher dos tempos. Baseado em livro de Virgínia Woolf, tem Tilda Swinton no papel principal. No século 16 a trama começa, nos áureos gloriosos do império europeu. A pompa dos vestidos luxuosos, o cenário majestoso, tudo muito organizado. E, com o passar dos minutos, as épocas se alteram muito e drasticamente. Assim como nas páginas da obra da escritora inglesa, o enredo transcorre os cinco séculos, até cair nos dias de hoje, quando Orlando, já mulher feita (ela nunca envelhece), revive tudo.

Com “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004), acontece algo semelhante. Vira do avesso todos os tipos de convenções. Às vezes, durante a fita, é comum o espectador se confundir com os rumos que Joel Barish (Jim Carrey) toma. A história dele começa no fim, volta para o meio, mistura recordações anteriores a isso, tem pitadas de sentimentos futuros e termine como iniciou. É estranho, não é? Embaraçado também. O resultado, porém, contradiz esses pequenos problemas e o filme é esplendoroso. Kate Winslet está graciosa na pele de Clementine, uma garota tresloucada, e de cabelos multicoloridos (estão ora azuis, vermelhos ou laranjas). Charlie Kaufman e Michel Gondry são os responsáveis por este roteiro espetacular, não à toa indicado ao Oscar deste ano na categoria roteiro original. Os efeitos especiais elaborados quase manualmente pelos bastidores (há cenas onde a câmera age normalmente, sem computadores, e os atores trocam de cenários através das secretas portas nos estúdios, e aí desaparecem e surgem novamente, como passe de mágica) são irretocáveis.

“Brilho Eterno” conta com a participação, além de Jim e Kate, de Kirsten Dunst (a Mary Jane de “Homem Aranha I e II”, de 2002-2004), Elijah Wood (o Frodo dos três “O Senhor dos Anéis”, de 2002-2003-2004) e Tom Wilkinson (“Entre Quatro Paredes”). Juntos, o quinteto protagoniza cenas e momentos cômicos, emocionantes, de arrependimentos por toda parte. Tudo ocorre na reviravolta da vida de Joel, um trabalhador tímido e encabulado que se apaixona por uma menina perdida e também gostosamente eloqüente. Quando ela resolve apagar de sua memória o período em que viveu com ele, Joel resolve fazer o mesmo, por vingança. Então, percebe que seu amor por Clementine ainda vive. São saltos como esse que a fita relembra alegrias, tristezas, decepções de um relacionamento bruto e desgastado. O longa-metragem revela como tudo aquilo começou. Na verdade, Joel tinha namorada quando conheceu a outra. Kate, 29 anos, obteve a quarta indicação ao Oscar (disputou por “Titanic”, 1997; “Razão e Sensibilidade”, 1995; como atriz principal; e em 2001 como coadjuvante de “Íris”).

Nessa trâmite de roteiros pitorescos, o que mais se destaca é o de “Amnésia” (2001). Escrito por Christopher Nolan e Jonathan Nolan, este filme surpreendeu a todos por contar toda a história, absolutamente inteira, do fim para o começo. Com Guy Pearce e Carrie-Anne Moss no elenco, a fita mostra um homem que ficou desmemoriado (ele não grava fatos recentes, minutos atrás) ao sofrer violento assalto e assistir o assassinato de sua esposa. O trauma o faz querer descobrir todo o próprio passado. Para tanto, toma precauções malucas e estranhas, como tatuar na sua pele dados importantes da vida dele, como nomes e telefones, e não confiar em ninguém. Nunca. Nessa caminhada com destino incerto, as seqüências impressionam pela agilidade e veracidade. Guy interpreta a mente de sua encarnação com vigor de principiante. Beira a perfeição dos atores de outrora, da época do ouro da sétima arte. “Amnésia” (“Lembrança”, no título traduzido originalmente) recebeu duas indicações da Academia: roteiro original e edição. Na segunda categoria deveria ter recebido o troféu dourado.

São roteiros assim, bem escritos, que conduzem uma boa história. “Orlando”, “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”, “Amnésia” e “Corra, Lolla, Corra!” exemplificam o talento. Uma palavras simples por fora, mas complexa por dentro.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 19/06/2009
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