Barbárie ao som de música clássica (publicado originalmente em 15/12/2004)

Durante e após o encerramento da acachapante (para os norte-americanos) guerra do Vietnã, a qual peregrinou por dez anos (1965-1975), o cinema dos Estados Unidos produziram inúmeras fitas sobre o assunto. A melhor, seja pelo elenco, pela produção e qualidade é “Apocalipse Now” (1979). Relançada em 1999 como “Apocalipse Now Redux”, a versão definitiva com mais de três horas de duração (o tempo passa sem o espectador perceber), o filme é excepcional e iluminado. Além de ter elenco estelar (só para citar alguns, Marlon Brando, Martin Sheen, Robert Duvall, Dennis Hopper, Harrison Ford e Laurence Fishburne – chega ou quer mais?) e da direção milimetricamente nervosa de Francis Ford Coppola, a película rodada nas Filipinas mostrou ao mundo como fazer barbárie de mentira. Obteve oito indicações ao Oscar e venceu nas categorias som e fotografia. Esteve ainda na disputa, entre outros, nos quesitos filme, diretor e ator coadjuvante para Duvall. Na festa do Globo de Ouro ficou com a estatueta de longa e Robert Duvall levou no quadro que havia perdido no Oscar.

“Apocalipse Now” vai além dessas recônditas premiações (recebeu também a Palma de Ouro no Festival de Cannes). O roteiro conta a terrível missão a que o Capitão Willard (Sheen) é obrigado a fazer: se deslocar até o Camboja para despedaçar o comando do Coronel Walter Kurtz (Brando), americano veterano de conflitos que lidera com mãos de ferro uma pequena aldeia repleta de corpos em decomposição, como se fosse Buda. Para complicar, Kurtz, na beira dos 60 anos, não sabe mais o que faz e aos poucos vai enlouquecendo. Essa trilha que Willard tem de percorrer é cercada de medos e dúvidas. Seus comandados se juntam a ele nesta tarefa: Lance (Sam Bottons), surfista convocado à guerra, tipo o galã da turma; Clean (Fishburne, na época das filmagens com 14 anos de idade – ele mentiu à direção do filme para ser contratado), adolescente deslumbrado com as visões; quem dirige o barco-patrulha (Albert Hall), taxista jovem usuário de drogas e Chef (Frederic Forrest), cozinheiro que trocou o exército pela marinha porque achava a comida dos mares mais deliciosa e apreciável.

Na fita, há momentos dignos de orações em agradecimento à sétima arte. A mais maravilhosa delas é a cena onde vários helicópteros ficam em formação para atacar o inimigo e o comandante da tripulação ordena ao soldado que ligue o aparelho de som para tocar “A Cavalgada das Valquírias”, do compositor do século retrasado Richard Wagner (1813-1883). Deixa quaisquer pessoas com água nos olhos. Impressiona sobremodo o equilíbrio da seqüência. Dá ares de grandes concertos feitos por tiros de metralhadora entrosados. O instante onde surfistas praticam o esporte nas “praias” do Vietnã é ainda mais sensacional. A mini-estátua para a fotografia foi conseqüência da atuação generosa de Marlon Brando. Na época aos 55 anos, o ator vivia freqüentemente alcoolizado, estava com 40 quilos acima do peso e só aceitou participar das filmagens (depois de infinitas insistências de Coppola) se as câmeras o focalizassem em meio a sombra, exatamente para que o público não percebesse a mórbida obesidade dele. De cabeça raspada, deu conta do recado. Afinal, estamos falando de Marlon Brando.

Os contratempos para finalizar a película foram muitos. Francis Ford Coppola, por exemplo, ameaçou cometer suicídio diversas vezes quando ficava próximo da loucura. O protagonista Martin Sheen sofreu teve ataque cardíaco ao filmar a cena na qual manobra seus movimentos de luta perto do espelho. Ficou semanas sem poder filmar e a fita, assim, permaneceu parada. Antes, os estúdios cinematográficos recusaram o projeto, por não acreditar na capacidade de Coppola. Porém, depois do estampido dos “O Poderoso Chefão” (1972 e 1974, ambos ganhadores do Oscar de melhor filme), o diretor conseguiu convencer os produtores. Com Marlon Brando, as negociações emperravam sempre e Francis ameaçou trocá-lo por Jack Nicholson, Al Pacino ou Robert Redford. No fim, Brando fez o trabalho. Coppola tirou do próprio bolso milhões de dólares ao ver o orçamento do filme ultrapassar o previsto. Para tanto, deu como garantia suas propriedades, como a casa dele. Nos planos originais, as filmagens durariam seis semanas. Na prática, elas foram concluídas em arrastadíssimos 16 meses.

Derrubado todos os preconceitos, o longa-metragem alçou-se como clássico de guerra. O épico dos épicos, “Apocalipse Now Redux” expressou-se como a obra-prima definitiva sobre a guerra do Vietnã. Existem lá passagens reais. A tribo dominada pelo tirano Kurtz era de fato uma tribo. O boi sendo sacrificado, nos últimos minutos da fita, também é verdadeiro (ritual comum naquele local). A parte sensual da película fica por conta das coelhinhas da revista Playboy. As garotas fazem shows e alegram os combatentes com outras diversões, se é que vocês me entendem. O contato com franceses se conclui irônico. Remete a “Indochina” (1992), filme francês com a escultural Catherine Deneuve que aborda a sobrevivência de uma jovem em meio às batalhas em terras vietnamitas. As autocríticas dos norte-americanos estão em “Apocalipse Now Redux”: seja pela infantilização dos soldados meio aprendizes ou na auto-suficiência dos comandantes. Coppola armou bem suas câmeras e ousou, para os padrões da década de 70, nos passos dançantes das imagens, principalmente com os helicópteros.

Martin Sheen, com os delírios do início da fita, passando por seus diálogos com o mito Marlon Brando (que só surge na trama depois de mais de duas horas de duração), é o ponto central do filme. Dennis Hopper, no papel do fotojornalista convertido pelo coronel Kurtz, garantiu boa interpretação. Harrison Ford, então aos 35 anos, participa apenas das seqüências do começo de “Apocalipse Now” (PS: para 2006 está anunciado “Indiana Jones 4”, o ator encarnará o herói aos 64 anos – é para dar risada). Francis Ford Coppola soube aproveitar bem o tesouro que estava nas mãos dele. Apesar dos conturbados meses de filmagem, o diretor amarrou com seriedade e cicatrizou estavelmente o enredo. Os problemas foram tantos que Francis montou um material a parte onde continha os bastidores dos sets. Quase às turras com todo mundo, ele se viu aliviado ao assistir os mais de 200 minutos ali, na frente dele. Suor e lágrimas juntaram barbárie com música clássica, matança absoluta com ritmo de Richard Wagner. Fogos de artifício para “Apocalipse Now Redux”. O horror agregado com embalos de Wagner. Messiânico.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 14/06/2009
Código do texto: T1647911
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.