A desconfiança atrás e diante das câmeras (publicado originalmente em 8/12/2004)

Quem iria delirar e prever que um pernambucano nascido em meados da década de 1940 iria, quase 60 anos depois, liderar um país de 180 milhões de pessoas? Esse destino coube a Luís Inácio da Silva. De torneiro mecânico no interior de São Paulo, quando chegou vindo num daqueles pau-de-araras (caminhões velhos que trazem pessoas pobres que querem tentar vidas melhores) amontoados de gente como ele, até virar líder sindical conhecido no Brasil inteiro, ser preso pela ditadura militar. A trajetória do atual presidente é contada por Eduardo Coutinho no documentário “Peões” (2004), lançado dias atrás apenas em algumas salas de cinema do país. Nesta fita, depoimentos de pessoas as quais conviveram com Luís antes da fama acertam em cheio as polêmicas do presidente, como por exemplo, a bebida. Porém, este trecho por cortado pelo cineasta. A película é recheada de entrevistas com pessoas que conheceram Lula, admiradores dele. É a característica de Coutinho, famoso, entre outros, por “Edifício Master” (2002), “Babilônia” (1999) e “Cabra Marcado Para Morrer” (1985).

Mas não é apenas o exercício de Eduardo que está em cartaz. Muito mais bem elaborado, com mais recursos que seu colega, João Moreira Salles obteve privilegiada autorização do próprio Lula para filmá-lo durante a campanha eleitoral de 2002. É um primor. Há imagens de Lula em todas as situações possíveis: no avião, no barbeiro, nos estúdios de gravação, nos hotéis, nas ruas etc. E nosso comandante se exibe em certos momentos nervoso, apreensivo, brincalhão, concentrado, aliviado, e, sobretudo, autêntico. O filme quer destacar, entre as características principais dele, o lado bonachão do então candidato a presidente. As influências de Duda Mendonça, aquele das rinhas de galo, cuja importância na campanha de 2002 foi essencial como marqueteiro, estão presentes. Mendonça queria botar o antigo Lula numa gaveta e trancá-lo lá para sempre. Conseguiu. Diferentemente dos pleitos de 1989, 1994 e 1998, Inácio da Silva estava agora sorridente, “exibindo as covinhas”, como afirmou Duda, que desejava exatamente isso de seu cliente. Este é “Entreatos” (2004), obra-prima de Salles.

Ao recuarmos aos anos mencionados no parágrafo anterior, esse documentário de João Moreira não teria existido porque Lula não teria autorizado. Começou vida política em 1982 ao se candidatar ao governo do Estado de São Paulo. Contudo, nos debates realizados na Rede Bandeirantes, Lula, que vestia camiseta azul-marinho simples de manga comprida, foi totalmente ofuscado por Franco Montoro (vencedor da eleição) e Jânio Quadros, que travaram diálogos memoráveis. O PT (Partido dos Trabalhadores), fundado em 1980, disputava sua primeira concorrência a cargos públicos. Com a derrota de Inácio, de barba preta e aspecto sinistro, nova disputa aconteceu em 1986. Desta vez, Lula era candidato a deputado federal. Terminou como o mais votado da história até aquele instante (teve aproximadamente 500 mil votos, bem menos que o quase 1,6 milhão de Enéas Carneiro em 2002). O cargo de deputado foi exercido com apatia. Afastou-se na metade de 1989 para seu maior objetivo: o partido disputaria a presidência da República junto com dezenas de pessoas de outras agremiações.

Seria, desde 1961, quando Jânio chegou à Brasília, a eleição número um para a cadeira de mais importância no país. Surgiram personagens incomuns, como era de se supor. Apareceram Zamir, Afif Domingos, Eudes Matar, Lívia Maria, Marronzinho, Paulo Gontijo, Celso Brant, Pedreira, Manoel Horta, Afonso Camargo etc. Isso sem contar os nomes carimbados como Ulysses Guimarães, Mário Covas, Leonel Brizola, o ex-vice-presidente de João Figueiredo, Aureliano Chaves (que “roubou” a vaga de Silvio Santos no PFL), Paulo Maluf e a dupla que alcançou segundo turno: Lula e Fernando Collor de Mello. Entre 15 de novembro e 17 de dezembro daquele ano, o Brasil parou. Aconteceu de tudo: troca de acusações e baixarias no horário eleitoral, manchetes absurdas de jornais e, por fim, os debates na televisão. As emissoras de TV se uniram para transmitir em rede a conversa entre ambos. Bóris Casoy mediou o primeiro. Alexandre Garcia, o segundo, três dias antes da votação. A história da edição deste derradeiro debate é mais que conhecida. Collor se elegeu com 35 milhões de votos.

Em “Entreatos” este fato obscuro não é citado. Nem meia palavra é dita. Abafar é questão de tempo meramente. Nos pleitos seguintes, 1994 e 1998, Lula sabia que não tinha chance alguma com o Fernando Henrique do Real. Cabisbaixo, ameaçou largar tudo se perdesse em 2002. Disputou com Eduardo Suplicy prévias do PT que escolheria o candidato à presidência. Lula deu banho com mais de 80% da preferência dos petistas. Nas pesquisas, ficou nos calcanhares de Ciro Gomes e José Serra o tempo todo. Depois, deslanchou. Ciro e Serra estraçalharam um ao outro e Lula se viu livre para voar. Posso afirmar aqui que “Peões” seria os pães e “Entreatos” o recheio deste sanduíche político. É pena que estes longas não sejam exibidos em circuito comercial, para, assim, o grande público ver e se deliciar com eles. Principalmente nessa época de Natal e ano novo, o cinema reserva suas salas para fitas infantis, geralmente de baixa qualidade, e atraem bilheteria satisfatória. São negócios. Girar em torno disso é difícil e pular estas barreiras também. Os filmes em destaque mereceriam tal agrado.

O governo do PT atinge no fim do mês a metade do mandato. Já se fala nos bastidores em nova campanha para reeleição, possíveis vices etc. Só esse “por trás das cortinas” daria um ótimo filme, um novo documento da democracia. Este sim Luís Inácio da Silva não autorizaria. O que ocorre nos porões da Granja do Torto? No caso de Fernando Henrique Cardoso, houve várias denúncias sobre a emenda da reeleição dele, em 1998. Vamos esperar para ver o que acontecerá com Lula. Em 1989 ele era o cara-fechada, que não sorria, não passava ares confiáveis. Continuou com esse rosto em 1994, porém um pouco mais ameno, mais tranqüilo. Falava ainda errado, mas isso o povo já estava mais que acostumado. Em 1998, quando Brizola foi seu vice (quatro anos antes foi Mercadante), seguia, mas sem a mesma veemência, seus conceitos esquerdistas. Tudo de transformou há 24 meses, quando Duda Mendonça assumiu as rédeas. Aí apareceu o Lula carinhoso, desprendido, amável, cordial... A aparência se alterou, mas será que a consciência também? “Entreatos” não responde essa pergunta.

Não é necessário muito esforço para notar a mudança. O Lula de 1989 não negociaria com o FMI de jeito nenhum. Muito menos se uniria a PMDB, PL, PP (ex-PDS, ex-Arena), PTB. E o que significa a Ancinav, a lei para o jornalismo? Lula mudou... Muito. E driblou preconceitos como se driblasse seus colegas nos jogos de futebol do fim de semana.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 11/06/2009
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