Perspectivas virtuais para o cinema (publicado originalmente em 4/12/2004)

Quando o telefone foi inventado, pensaram que a comunicação entre as pessoas não seria mais tão levada a sério. Elas estariam longe uma da outra, o contato pessoal ficaria abalado. Como se sabe, nada disso aconteceu. Pulando décadas na frente, ao criarem a internet, essas mesmas dúvidas vieram pairar na cabeça dos estudiosos. A população ficaria mais fria sentada diante da tela do computador e as conversas se concluiriam em meros bate-papos escritos, o que ocorre hoje. Mas não são todos que podem ter acesso a esse tipo de tecnologia avançada. Em muitos locais, ainda nem sequer a televisão está presente, tampouco a eletricidade. Há pessoas mais simples que se assustam ao ver a imagem de gente falando através dos teclados, e principalmente se ouve quem está em algum dos portais da rede. O cinema sempre inovou nessa questão. É obrigação apresentar ao público quais as novas armações do mundo da sétima arte: quais efeitos especiais se possui, cenários todos de mentira, as animações elaboradas em avançados computadores etc. Dar passos adiante é a característica central do cinema.

Contudo, tudo que é demais acabada por prejudicar. Exagerar é peça fundamental para estragar produções de qualidade. Podemos dizer que a nova fase desses superefeitos de altíssima credibilidade começou com “Matrix” (1999) e se estendeu nos três episódios de “O Senhor dos Anéis” (2002, 2003 e 2004). Dois filmes lançados recentemente vieram bater nos iguais botões da dupla citada antes, mas têm algo de estranho: tudo ali parece forçado e o espaço virtual povoa as produções. “Capitão Sky e o Mundo de Amanhã” conta com Gwyneth Paltrow, Jude Law e Angelina Jolie no elenco. E basta. O restante, incluindo cenários, é de mentira. Os atores tiveram de encenar em locais completamente de cor azulada, para facilitar a colocação de prédios, carros, ruas e aviões fictícios. A história se passa em 1939 na cidade de Nova Iorque. Lá, um Hindenburg (dirigíveis alemães famosos na época, com proibição de voar desde 1937, quando um deles pegou fogo) desce trazendo um importante cientista. Este desaparece e a repórter Polly Perkins (Gwyneth) corre para descobrir os motivos dessa situação.

Law encarna Joe Sullivan, o Capitão Sky, e Angelina faz Franky Cook, policial britânica com o tapa-olho que a deixa ainda mais sensual. O “engraçado” da fita está justamente nos profissionais do cast: eles atuaram no vazio, claro, com as devidas marcações, porém, nada vendo, sem saber em qual lugar está o quê. Se essa película fosse feita 20 anos atrás, numa época em que micros engatinhavam com nenhuma perspectiva, a discussão não selaria frases finais. Todo mundo ficaria incompreensível naquela situação. No século 21 isto é diferente. Apesar de a maioria da população do planeta viver sob miséria absoluta, o mundo se move de acordo com o teclado do computador. Nenhuma empresa trabalha mais com máquinas de escrever. Nem poderia. O que quero explicar é que filmes desse tipo têm seus méritos, seus elogios e adjetivos generosos, todavia não devem tomar conta dos estúdios de cinema mundiais, relegando a nós, espectadores, cenas irreais. Para isso existem desenhos animados. Estas produções até que não custam caro. Assim, se corre ainda mais o risco de que se predominem.

“O Expresso Polar”, lançado há 10 dias aqui, é e não é um desenho. Tem Tom Hanks no papel principal (papéis, porque ele faz cinco pessoas), mas o ator é uma animação com os gestos e olhares de Tom. Para esta fita, desenvolveu-se a chamada “captura do desempenho”, técnica onde existem 72 câmeras espalhadas num estúdio de três metros quadrados de chão. Essas câmeras soltam os raios infravermelhos. Os dados colhidos deste aparelho mostram a um computador os obstáculos que a luz acha (no caso, os sensores aplicados em Hanks, vestido com uma espécie de roupa de mergulhador). Assim, Robert Zemeckis, diretor da película, se absteve de rodar um rolo de filme sequer. Aliás, ele é mestre neste quesito de criatividade. É dele o impagável “Uma Cilada para Roger Rabbit” (1988), no qual o coelho desenhado contracena com seres humanos de verdade. Trabalhou com Tom Hanks no premiadíssimo “Forrest Gamp – O Contador de Histórias” (1994, ganhador do Oscar de ator, diretor e filme). Robert, adorador das novas tecnologias, experimentou novamente em “O Expresso Polar”.

O enredo é conhecido: garoto, quando chega na idade em que não engole mais histórias sobre o Papai Noel, ganha derradeira chance de se manter inocente se quiser entrar no trem que vai até o Polo Norte visitar o Bom Velhinho. No veículo, outras crianças com o mesmo dilema topam viajar. Como se nota, nada de extraordinário. A questão é: a partir de agora, os atores serão tão virtuais quanto os desenhos? Dispensar atuações profissionais ou pagar salários mais baixos para eles apenas ficarem na roupa de mergulhador, é assombroso. A categoria ficaria reduzida a pó. No segundo episódio de “O Senhor dos Anéis – As Duas Torres”, aparece Smeagol (Gollum) criatura desenvolvida através dos movimentos do rosto de um ator desconhecido. A equipe da fita fez de tudo para que ele figurasse na lista dos cinco mais na votação do Oscar para ator coadjuvante. Não deu certo. Deram até um jeito de ele, o ator, aparecer poucos minutos no filme. Nem assim vingou. Aí mora o problema. Analisar a qualidade desses profissionais não é possível só pelas suas caras e bocas que manipulam na câmera.

Com bem menos pretensões, o desenhista Maurício de Souza esteve semanas atrás em cartaz com o “Cine Gibi da Turma da Mônica”. Na película, os personagens dos quadrinhos (Chico Bento, Mônica, Magali, Cebolinha e Cascão) conversam com artistas reais (a cantora Wanessa Camargo, por exemplo). “O Expresso Polar” faz emergir sentimentos iguais a todos os Natais anteriores a este ano: esperança, paz, felicidade, alegria e contemplação. Tom Hanks, que como desenho nessa fita é igual a um professor que tive no Ensino Médio, pode se considerar o pioneiro neste tipo de set (se é que se pode denominar aquele pequeno espaço de três metros de set). O perigo maior recai sobre as conseqüências deste trabalho: será que daqui a 20, 30 ou 40 anos a indústria cinematográfica reduzirá a apenas especialistas em computadores e mais nada, desperdiçando o talento maduro de atores com carreiras sensacionais? Interessará aos produtores de animações apenas as feições dos contratados, e não mais a interpretação, já que qualquer correção poderá ser feita em simples tecladas reparadoras?

Seria jocoso assistir as festas do Oscar serem preparadas, ao invés de em ilhas de edição, em locais de feitura de desenhos, com computadores altamente potentes. Curioso, e ao mesmo tempo, alarmante.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 11/06/2009
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